O embate Comida vs Combustível, algo que parece ser impossível no cenário brasileiro, parece estar em ação na África. A utilização de grandes quantidades de milho para etanol está fazendo com que as commodities agrícolas explodam de preço e consequentemente inviabilizem a sua aquisição por parte dos países pobres.
Por isso que o etanol de cana parece ser a melhor solução para biocombustível.
O artigo abaixo foi publicado no Le Monde de 1 de abril:
África cai na armadilha da explosão dos preços dos alimentos
Nas ruas do continente africano, só se fala nisso: os preços dos gêneros alimentícios de primeira necessidade enlouqueceram de vez. No espaço de poucos meses, uma combinação de fatores envolvendo aumentos dos preços do trigo, do arroz e do óleo nos mercados mundiais; medíocres colheitas locais; além da inexistência de qualquer controle dos preços, conduziu a um recrudescimento das tensões sociais e comprometeu a estabilidade política em muitos países.
Espetacular nas cidades africanas, a explosão dos preços também está no processo de se impor com força na Ásia. Esta evolução vem confirmar as declarações de Jacques Diouf, o diretor geral da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), que havia profetizado, já em outubro de 2007, que "motins da fome" não tardariam a acontecer. De fato, o preço médio de uma refeição básica aumentou em 40% no espaço de um ano. "Muitas são as pessoas que passaram a não poder comer mais do que uma refeição por dia", dizem os populares em Dakar (Senegal). "Com 1.500 francos CFA (pouco mais de R$ 6,00) para alimentar a minha família, eu não sei mais o que fazer", diz uma dona de casa num mercado de Bamako, no Mali.
De Douala (Camarões) a Abidjã (Costa do Marfim) e do Cairo (Egito) a Dacar (Senegal), as manifestações de ruas vêm sacudindo as capitais africanas e estão obrigando os governantes a tomarem medidas de emergência para controlarem os preços.
"Gbagbo, o mercado está caro demais", "Gbagbo, estamos com fome", clamavam, na segunda-feira, 31 de março, mulheres em Abidjã, dirigindo-se ao presidente marfinense Laurent Gbagbo. Alguns enfrentamentos com a polícia causaram a morte de pelo menos duas pessoas. De fato, na Costa do Marfim, o preço do quilo de arroz passou de 250 para 650 francos CFA (de R$ 0,59 a R$ 2,62) no decorrer do ano, enquanto aquele do óleo aumentou em mais de 40%. O sabão, o leite e a carne bovina acompanharam o movimento, configurando uma tendência à alta, a qual os números oficiais não estão refletindo (8% de inflação em 2007 para o continente negro como um todo).
"Nos países da zona CFA (espaço monetário e econômico que reúne 15 Estados no oeste da África), os aumentos seriam ainda mais importantes se o franco CFA não estivesse atrelado ao euro, uma divisa forte. Com isso, para esses países, o custo das importações acabou diminuindo na mesma proporção. Os países cuja moeda está atrelada ao dólar estão sofrendo muito mais", assegura um economista da Agência Francesa de Desenvolvimento (AFD).
Ao optar pela supressão dos direitos alfandegários e por uma redução da TVA (taxa sobre produtos e serviços), o chefe do Estado marfinense, da mesma forma que os seus homólogos camaronês, senegalês e egípcio que estão igualmente confrontados ao clamor das ruas, comprometeram-se a forçar uma redução dos preços, acionando algumas das raras alavancas que o Estado ainda controla. A receita não faz parte daquelas que o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial preconizam, pois ela pesa sobre as finanças públicas.
Foi tanto e somente a gravidade da situação que conduziu as instituições financeiras a se mostrarem mais acomodatícias em relação aos países em desenvolvimento. O governo egípcio acrescentou ao seu pacote uma medida mais radical: a proibição temporária de se exportar o arroz produzido localmente.
Nenhum país está imune às confusões. Em Dakar, uma manifestação proibida "contra a vida cara" degenerou, no domingo, 30 de março, três meses depois do anúncio de medidas para conter a inflação. Estas incluíram a supressão de taxas sobre o arroz, a criação de um selo destacando "comércios modelos", exemplares pela moderação dos seus preços, a diminuição das remunerações dos ministros e até mesmo da do chefe do Estado. Mas as medidas não produziram os efeitos esperados. "Os comerciantes não se adequaram às novas regras do jogo e o Estado não tem mais condições para controlar os preços", constata Mamadou Barry, da ONG senegalesa Enda.
No Marrocos, que também vem sendo sacudido por manifestações "contra a vida cara", vários atos de protestos estão previstos para abril. A margem de manobra do governo está mais do que reduzida. No que vem a ser um caso raro na África, uma "reserva de compensação" foi instituída no Marrocos para compensar parcialmente os aumentos que incidem sobre os produtos de primeira necessidade, mas a totalidade da verba disponível, que foi aumentada no orçamento de 2008, estará esgotada até meados do ano.
Na Mauritânia, onde a auto-suficiência alimentar não ultrapassa 30%, a situação revela ser ainda mais dramática. Incapaz de financiar a importação de gêneros agrícolas, o país vai conhecer "uma crise alimentícia muito séria em 2008", conforme avisou o Programa Alimentar Mundial (PAM) das Nações Unidas.
Em Burkina Faso, uma comissão parlamentar "contra a vida cara" foi instalada depois das manifestações que ocorreram em meados de março em várias cidades. Os sindicatos convocaram uma "greve geral" nos dias 8 e 9 de abril com o objetivo de reclamar aumentos de salários, o controle dos preços e a redução das taxas sobre os combustíveis.
Eugène Nyambal, um conselheiro para assuntos africanos no Fundo Monetário Internacional (FMI), estima que a situação nada mais é que o resultado das políticas que têm sido preconizadas pelas instituições financeiras internacionais. Ao longo das últimas décadas, elas incentivaram as culturas de exportação tais como a do algodão, em detrimento das culturas alimentícias, cuja aquisição, na época, era mais vantajosa, pois os preços no mercado internacional estavam bastante acessíveis. Essas políticas também exerceram pressões no sentido de favorecer o desmantelamento das estruturas de controle dos preços.
"Em sua maior parte, esses países em situação difícil estão aguardando soluções do Banco Mundial ou do FMI, os quais, por sua vez, estão totalmente desnorteados pelas evoluções recentes", acrescenta Nyambal, que enfatiza a gravidade das conseqüências dos atuais distúrbios sociais sobre os regimes no poder que não desenvolveram nenhuma política para apoiar a agricultura local. Nesse sentido, na noite de quinta-feira, por ocasião da festa da independência, o presidente senegalês Abdoulaye Wade anunciou que um "programa nacional de auto-suficiência" agrícola voltaria a ser implantado.
Em seu mais recente relatório anual, o Banco Mundial reconheceu o erro que ele havia cometido, e enfatizou que era preciso priorizar o renascimento das culturas alimentícias. Mas serão necessários muitos anos para modificar o modelo de desenvolvimento.
Tradução: Jean-Yves de Neufville (Le Monde)
Por isso que o etanol de cana parece ser a melhor solução para biocombustível.
O artigo abaixo foi publicado no Le Monde de 1 de abril:
África cai na armadilha da explosão dos preços dos alimentos
Nas ruas do continente africano, só se fala nisso: os preços dos gêneros alimentícios de primeira necessidade enlouqueceram de vez. No espaço de poucos meses, uma combinação de fatores envolvendo aumentos dos preços do trigo, do arroz e do óleo nos mercados mundiais; medíocres colheitas locais; além da inexistência de qualquer controle dos preços, conduziu a um recrudescimento das tensões sociais e comprometeu a estabilidade política em muitos países.
Espetacular nas cidades africanas, a explosão dos preços também está no processo de se impor com força na Ásia. Esta evolução vem confirmar as declarações de Jacques Diouf, o diretor geral da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), que havia profetizado, já em outubro de 2007, que "motins da fome" não tardariam a acontecer. De fato, o preço médio de uma refeição básica aumentou em 40% no espaço de um ano. "Muitas são as pessoas que passaram a não poder comer mais do que uma refeição por dia", dizem os populares em Dakar (Senegal). "Com 1.500 francos CFA (pouco mais de R$ 6,00) para alimentar a minha família, eu não sei mais o que fazer", diz uma dona de casa num mercado de Bamako, no Mali.
De Douala (Camarões) a Abidjã (Costa do Marfim) e do Cairo (Egito) a Dacar (Senegal), as manifestações de ruas vêm sacudindo as capitais africanas e estão obrigando os governantes a tomarem medidas de emergência para controlarem os preços.
"Gbagbo, o mercado está caro demais", "Gbagbo, estamos com fome", clamavam, na segunda-feira, 31 de março, mulheres em Abidjã, dirigindo-se ao presidente marfinense Laurent Gbagbo. Alguns enfrentamentos com a polícia causaram a morte de pelo menos duas pessoas. De fato, na Costa do Marfim, o preço do quilo de arroz passou de 250 para 650 francos CFA (de R$ 0,59 a R$ 2,62) no decorrer do ano, enquanto aquele do óleo aumentou em mais de 40%. O sabão, o leite e a carne bovina acompanharam o movimento, configurando uma tendência à alta, a qual os números oficiais não estão refletindo (8% de inflação em 2007 para o continente negro como um todo).
"Nos países da zona CFA (espaço monetário e econômico que reúne 15 Estados no oeste da África), os aumentos seriam ainda mais importantes se o franco CFA não estivesse atrelado ao euro, uma divisa forte. Com isso, para esses países, o custo das importações acabou diminuindo na mesma proporção. Os países cuja moeda está atrelada ao dólar estão sofrendo muito mais", assegura um economista da Agência Francesa de Desenvolvimento (AFD).
Ao optar pela supressão dos direitos alfandegários e por uma redução da TVA (taxa sobre produtos e serviços), o chefe do Estado marfinense, da mesma forma que os seus homólogos camaronês, senegalês e egípcio que estão igualmente confrontados ao clamor das ruas, comprometeram-se a forçar uma redução dos preços, acionando algumas das raras alavancas que o Estado ainda controla. A receita não faz parte daquelas que o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial preconizam, pois ela pesa sobre as finanças públicas.
Foi tanto e somente a gravidade da situação que conduziu as instituições financeiras a se mostrarem mais acomodatícias em relação aos países em desenvolvimento. O governo egípcio acrescentou ao seu pacote uma medida mais radical: a proibição temporária de se exportar o arroz produzido localmente.
Nenhum país está imune às confusões. Em Dakar, uma manifestação proibida "contra a vida cara" degenerou, no domingo, 30 de março, três meses depois do anúncio de medidas para conter a inflação. Estas incluíram a supressão de taxas sobre o arroz, a criação de um selo destacando "comércios modelos", exemplares pela moderação dos seus preços, a diminuição das remunerações dos ministros e até mesmo da do chefe do Estado. Mas as medidas não produziram os efeitos esperados. "Os comerciantes não se adequaram às novas regras do jogo e o Estado não tem mais condições para controlar os preços", constata Mamadou Barry, da ONG senegalesa Enda.
No Marrocos, que também vem sendo sacudido por manifestações "contra a vida cara", vários atos de protestos estão previstos para abril. A margem de manobra do governo está mais do que reduzida. No que vem a ser um caso raro na África, uma "reserva de compensação" foi instituída no Marrocos para compensar parcialmente os aumentos que incidem sobre os produtos de primeira necessidade, mas a totalidade da verba disponível, que foi aumentada no orçamento de 2008, estará esgotada até meados do ano.
Na Mauritânia, onde a auto-suficiência alimentar não ultrapassa 30%, a situação revela ser ainda mais dramática. Incapaz de financiar a importação de gêneros agrícolas, o país vai conhecer "uma crise alimentícia muito séria em 2008", conforme avisou o Programa Alimentar Mundial (PAM) das Nações Unidas.
Em Burkina Faso, uma comissão parlamentar "contra a vida cara" foi instalada depois das manifestações que ocorreram em meados de março em várias cidades. Os sindicatos convocaram uma "greve geral" nos dias 8 e 9 de abril com o objetivo de reclamar aumentos de salários, o controle dos preços e a redução das taxas sobre os combustíveis.
Eugène Nyambal, um conselheiro para assuntos africanos no Fundo Monetário Internacional (FMI), estima que a situação nada mais é que o resultado das políticas que têm sido preconizadas pelas instituições financeiras internacionais. Ao longo das últimas décadas, elas incentivaram as culturas de exportação tais como a do algodão, em detrimento das culturas alimentícias, cuja aquisição, na época, era mais vantajosa, pois os preços no mercado internacional estavam bastante acessíveis. Essas políticas também exerceram pressões no sentido de favorecer o desmantelamento das estruturas de controle dos preços.
"Em sua maior parte, esses países em situação difícil estão aguardando soluções do Banco Mundial ou do FMI, os quais, por sua vez, estão totalmente desnorteados pelas evoluções recentes", acrescenta Nyambal, que enfatiza a gravidade das conseqüências dos atuais distúrbios sociais sobre os regimes no poder que não desenvolveram nenhuma política para apoiar a agricultura local. Nesse sentido, na noite de quinta-feira, por ocasião da festa da independência, o presidente senegalês Abdoulaye Wade anunciou que um "programa nacional de auto-suficiência" agrícola voltaria a ser implantado.
Em seu mais recente relatório anual, o Banco Mundial reconheceu o erro que ele havia cometido, e enfatizou que era preciso priorizar o renascimento das culturas alimentícias. Mas serão necessários muitos anos para modificar o modelo de desenvolvimento.
Tradução: Jean-Yves de Neufville (Le Monde)
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