domingo, junho 21, 2009

Panorama das agriculturas chinesa e indiana

Continuando o post anterior que fala sobre os BRICs , seguem abaixo 4 artigos sobre as agriculturas chinesas e indianas publicadas nas edições especiais de dezembro de 2007 - Entenda melhor a China na agronegócio mundial (Edição 12 – Volume 27) e janeiro de 2008 - Qual o peso da Índia no agronegócio global? (Edição 01 – Volume 28) respectivamente.

Abaixo na sequência dos artigos sobre a China temos uma introdução de autoria de André Nassar e Saulo Nogueira do ICONE, seguida pelas Macro tendências do setor agrícola chinês. Sobre a Índia temos a introdução e na sequência, Desafios do setor agrícola Indiano. Os quatro artigos podem ser obtidos na íntegra no site da revista clicando nos links abaixo:

China: Introdução e Macro tendências

CHINA
Introdução *

André Meloni Nassar - Diretor geral do Icone
Saulo Nogueira - Pesquisador do Icone

A entrada da China na Organização Mundial do Comércio representou um processo de mudança estrutural no seu setor agrícola. Não só porque o país reduziu fortemente suas tarifas agrícolas, a ponto de possuir atualmente uma estrutura tarifária equivalente a do Brasil para as principais commodities comercializadas mundialmente, mas também porque o governo promoveu mudanças profundas em suas políticas domésticas que afetavam o setor agrícola. Finalizado o período de transição em 2004, o país vive um momento de redesenho de suas políticas agrícola e comercial. Esse é, sem dúvida, um motivo de preocupação para o Brasil.

Um mergulho na agricultura chinesa confirma a hipótese de que o país busca explorar suas vantagens competitivas, que são a abundância de mão de obra, com custos competitivos em relação a outros países em desenvolvimento. O país tem uma clara estratégia, traduzida em suas políticas públicas, de promover o desenvolvimento de produtos agrícolas intensivos em mão-de-obra e de alto valor agregado, como frutas, vegetais e carnes, especialmente aves e suínos. A estratégia do país reflete a constatação de que terra é um recurso escasso em território chinês e que somente algumas regiões produtoras possuem oferta suficiente de água.

Agregar valor à produção agrícola, como forma de gerar renda e dar competitividade ao produtor, se transformou em obsessão. Busca-se agregar valor tanto na produção agrícola, incrementando a produção de frutas e vegetais, mas, sobretudo, estimulando o desenvolvimento da indústria de processamento de alimentos. Claramente, a indústria de processamento está se desenvolvendo com muita rapidez. O mesmo pode ser dito sobre o setor varejista. As grandes cidades chinesas em nada perdem para aquelas dos países desenvolvidos na oferta de alimentos no setor supermercadista.

No entanto, mesmo migrando para produtos intensivos em mão-de-obra e assistindo à estagnação dos setores intensivos em terra, a China ainda vive o conflito entre produção e abastecimento nos produtos intensivos em terra, mesmo diante de uma população de 1,3 bilhão de habitantes, que está em claro processo de urbanização (em 2005, cerca de 43% da população já viviam nas cidades), o governo chinês ainda tem claros objetivos de auto-suficiência para produtos básicos, tais como trigo, arroz e carnes, e dá sinais de forte preocupação com a grande dependência do mercado mundial no abastecimento de soja, preocupação que será estendida para o milho à medida que as importações cresçam. Já se ouve no governo chinês discursos que argumentam que a incapacidade de a China aumentar sua produção de soja, aproveitando-se do enorme crescimento da demanda doméstica, é fruto da competição pelas importações.

Se, de um lado, o consumo de produtos básicos, como arroz e trigo, apresenta tendência declinante, comprovando que o consumidor chinês está migrando para uma dieta mais rica em proteínas, o consumo de carnes e lácteos está em franco crescimento, arrastando o consumo de farelo de soja e milho. Isso explica porque a China busca desenvolver políticas que reduzam a sua dependência externa de matérias-primas para rações. Nesse sentido, outro claro objetivo de longo prazo do governo é desenvolver políticas que resultem em aumento de produtividade de soja e milho.

A palavra segurança alimentar está na boca de todos os representantes do governo chinês. Os objetivos são claros: elevado nível de auto-suficiência da produção de arroz, trigo e carnes e controle sobre o nível de dependência externa em produtos como soja (e milho no futuro, certamente). Esses objetivos são determinantes centrais da política agrícola chinesa. Passados seis anos de entrada da China na OMC, o país começa a recompor suas políticas para a agricultura e os objetivos de segurança alimentar certamente estarão por trás dos programas em desenvolvimento. A obsessão pela soberania alimentar fica mais evidenciada no caso do algodão pois, embora as importações estejam em forte crescimento, não há claros objetivos de promover a produção doméstica de algodão.

Dos grandes e populosos países, a China, junto com a Índia, são ainda os grandes bastiões do discurso de que segurança alimentar significa soberania alimentar. Embora o país esteja em franco processo de urbanização, a palavra consumidor tem lá um significado próprio. No Brasil, quando falamos em consumidor, enxergamos um cidadão urbano que adquire alimentos no auto-serviço varejista. Lá, uma significativa parte da massa consumidora ainda vive no meio rural. Isso explica porque o país vive um conflito estrutural na formulação de suas políticas. Uma política para promover abastecimento de alimentos a baixo custo, por exemplo, por meio da importação, é do interesse do consumidor urbano, mas é vista como uma política que pune o consumidor/produtor rural. Esse conflito gera a obsessão pela soberania alimentar.

À sua maneira, a China está recuperando o conceito de multifuncionalidade da agricultura, propalado ostensivamente pelos europeus. Os defensores da multifuncionalidade argumentam que o meio rural tem diversas funções para uma sociedade, que vão além da produção de alimentos e fibras. No caso da China, os objetivos de desenvolvimento rural já contemplam objetivos como garantir a herança rural, desenvolvimento social e meio ambiente. Não é raro ouvir dos oficiais chineses que é preciso criar uma sociedade harmônica no país. A preocupação decorre do fato de que o seu crescimento econômico tem se dado em bases desiguais, na medida em que a renda per capita na população urbana cresce mais e mais rápido que a renda no meio rural. Reduzir essa disparidade, transferindo renda do meio urbano para o rural é uma macro tendência da China.

Embora a renda no meio rural venha crescendo menos que a renda nas cidades, o meio rural está ganhando complexidade do ponto de vista de sua estrutura de atividades econômicas. Já se observam tendências semelhantes às das sociedades como a norte-americana, onde a produção agrícola vem perdendo importância como fonte geradora de renda no meio rural, ao passo que atividades e salários não-agrícolas passam a ter maior importância como fonte de geração de riqueza.

O processo de urbanização ainda é uma tendência com implicações estruturais no setor agrícola. Do lado do consumo, porque a urbanização, aliada ao crescimento econômico, determina mudanças no padrão de consumo de alimentos. No entanto, a urbanização tem um efeito positivo relevante sobre a agricultura chinesa, pois auxilia na consolidação da produção e na redução das propriedades rurais que não estão integradas ao mercado e produzem para subsistência. Em produtos como arroz, trigo, aves e suínos, os números de auto-consumo, ou seja, o volume consumido localmente, são muito grandes. Em um país com 95% dos estabelecimentos rurais com propriedades médias entre 0,2 e 1 ha de tamanho médio, a consolidação pode não resultar em ganho de eficiência, mas certamente contribui para mitigar o problema da elevada dependência pela agricultura de subsistência de algumas localidades e regiões. A consolidação, no entanto, não significa que o governo chinês vá flexibilizar suas regulamentações de propriedade e uso da terra. Controlar a propriedade e o uso da terra ainda será objetivo do Estado chinês.

O tamanho do mercado chinês, a crescente capacidade de exportação de alguns setores, e as preocupações com segurança alimentar são determinantes dos investimentos que são realizados por estrangeiros na China, e pelos chineses no exterior. Embora existam poucos dados documentando investimentos chineses no setor agrícola, sabe-se que há empresas chinesas investindo em produção agrícola em países africanos, com o objetivo de garantir abastecimento para o mercado chinês. Além do varejo de alimentos, que fez pesados investimentos na China, indústrias de alimentos e tradings houses também estão se posicionando como forma de diversificar fontes de suprimento de matérias-primas agrícolas. A China pode se tornar um mercado ainda mais atrativo para investimentos no agronegócio se o governo promover mudanças nas legislações de propriedade e uso da terra. Embora esse tema ainda esteja fora das prioridades do governo, é uma opção que não deve ser descartada para o futuro, sobretudo à medida que o consumo de alimentos cresce no país. Ainda desconhecemos casos de empresas brasileiras do agronegócio que tenham investimentos na China. Já nossos concorrentes da Austrália e Nova Zelândia estão se movimentando com rapidez nesse sentido.

* Texto baseado no documento Overview of Agri-Food Structure, Trade and Policies in China, preparado por Tian Weiming, no contexto do projeto coordenado pelo Icone Rede Latino-Americana e Asiática de Inteligência em Agricultura e Alimentos. O sumário executivo e o texto em versão na íntegra estarão disponíveis no site do Icone (www.iconebrasil.org.br) a partir de fevereiro de 2008.

Macro tendências do setor agrícola chinês

A entrada da China na Organização Mundial do Comércio representou um processo de mudança estrutural no seu setor agrícola. Não só porque o país reduziu fortemente suas tarifas agrícolas, a ponto de possuir atualmente uma estrutura tarifária equivalente a do Brasil para as principais commodities comercializadas mundialmente, mas também porque o governo promoveu mudanças profundas em suas políticas domésticas que afetavam o setor agrícola. Finalizado o período de transição em 2004, o país vive um momento de redesenho de suas políticas agrícola e comercial. Esse é, sem dúvida, um motivo de preocupação para o Brasil.

Um mergulho na agricultura chinesa confirma a hipótese de que o país busca explorar suas vantagens competitivas, que são a abundância de mão de obra, com custos competitivos em relação a outros países em desenvolvimento. O país tem uma clara estratégia, traduzida em suas políticas públicas, de promover o desenvolvimento de produtos agrícolas intensivos em mão-de-obra e de alto valor agregado, como frutas, vegetais e carnes, especialmente aves e suínos. A estratégia do país reflete a constatação de que terra é um recurso escasso em território chinês e que somente algumas regiões produtoras possuem oferta suficiente de água.

Agregar valor à produção agrícola, como forma de gerar renda e dar competitividade ao produtor, se transformou em obsessão. Busca-se agregar valor tanto na produção agrícola, incrementando a produção de frutas e vegetais, mas, sobretudo, estimulando o desenvolvimento da indústria de processamento de alimentos. Claramente, a indústria de processamento está se desenvolvendo com muita rapidez. O mesmo pode ser dito sobre o setor varejista. As grandes cidades chinesas em nada perdem para aquelas dos países desenvolvidos na oferta de alimentos no setor supermercadista.

No entanto, mesmo migrando para produtos intensivos em mão-de-obra e assistindo à estagnação dos setores intensivos em terra, a China ainda vive o conflito entre produção e abastecimento nos produtos intensivos em terra, mesmo diante de uma população de 1,3 bilhão de habitantes, que está em claro processo de urbanização (em 2005, cerca de 43% da população já viviam nas cidades), o governo chinês ainda tem claros objetivos de auto-suficiência para produtos básicos, tais como trigo, arroz e carnes, e dá sinais de forte preocupação com a grande dependência do mercado mundial no abastecimento de soja, preocupação que será estendida para o milho à medida que as importações cresçam. Já se ouve no governo chinês discursos que argumentam que a incapacidade de a China aumentar sua produção de soja, aproveitando-se do enorme crescimento da demanda doméstica, é fruto da competição pelas importações.

Se, de um lado, o consumo de produtos básicos, como arroz e trigo, apresenta tendência declinante, comprovando que o consumidor chinês está migrando para uma dieta mais rica em proteínas, o consumo de carnes e lácteos está em franco crescimento, arrastando o consumo de farelo de soja e milho. Isso explica porque a China busca desenvolver políticas que reduzam a sua dependência externa de matérias-primas para rações. Nesse sentido, outro claro objetivo de longo prazo do governo é desenvolver políticas que resultem em aumento de produtividade de soja e milho.

A palavra segurança alimentar está na boca de todos os representantes do governo chinês. Os objetivos são claros: elevado nível de auto-suficiência da produção de arroz, trigo e carnes e controle sobre o nível de dependência externa em produtos como soja (e milho no futuro, certamente). Esses objetivos são determinantes centrais da política agrícola chinesa. Passados seis anos de entrada da China na OMC, o país começa a recompor suas políticas para a agricultura e os objetivos de segurança alimentar certamente estarão por trás dos programas em desenvolvimento. A obsessão pela soberania alimentar fica mais evidenciada no caso do algodão pois, embora as importações estejam em forte crescimento, não há claros objetivos de promover a produção doméstica de algodão.

Dos grandes e populosos países, a China, junto com a Índia, são ainda os grandes bastiões do discurso de que segurança alimentar significa soberania alimentar. Embora o país esteja em franco processo de urbanização, a palavra consumidor tem lá um significado próprio. No Brasil, quando falamos em consumidor, enxergamos um cidadão urbano que adquire alimentos no auto-serviço varejista. Lá, uma significativa parte da massa consumidora ainda vive no meio rural. Isso explica porque o país vive um conflito estrutural na formulação de suas políticas. Uma política para promover abastecimento de alimentos a baixo custo, por exemplo, por meio da importação, é do interesse do consumidor urbano, mas é vista como uma política que pune o consumidor/produtor rural. Esse conflito gera a obsessão pela soberania alimentar.

À sua maneira, a China está recuperando o conceito de multifuncionalidade da agricultura, propalado ostensivamente pelos europeus. Os defensores da multifuncionalidade argumentam que o meio rural tem diversas funções para uma sociedade, que vão além da produção de alimentos e fibras. No caso da China, os objetivos de desenvolvimento rural já contemplam objetivos como garantir a herança rural, desenvolvimento social e meio ambiente. Não é raro ouvir dos oficiais chineses que é preciso criar uma sociedade harmônica no país. A preocupação decorre do fato de que o seu crescimento econômico tem se dado em bases desiguais, na medida em que a renda per capita na população urbana cresce mais e mais rápido que a renda no meio rural. Reduzir essa disparidade, transferindo renda do meio urbano para o rural é uma macro tendência da China.

Embora a renda no meio rural venha crescendo menos que a renda nas cidades, o meio rural está ganhando complexidade do ponto de vista de sua estrutura de atividades econômicas. Já se observam tendências semelhantes às das sociedades como a norte-americana, onde a produção agrícola vem perdendo importância como fonte geradora de renda no meio rural, ao passo que atividades e salários não-agrícolas passam a ter maior importância como fonte de geração de riqueza.

O processo de urbanização ainda é uma tendência com implicações estruturais no setor agrícola. Do lado do consumo, porque a urbanização, aliada ao crescimento econômico, determina mudanças no padrão de consumo de alimentos. No entanto, a urbanização tem um efeito positivo relevante sobre a agricultura chinesa, pois auxilia na consolidação da produção e na redução das propriedades rurais que não estão integradas ao mercado e produzem para subsistência. Em produtos como arroz, trigo, aves e suínos, os números de auto-consumo, ou seja, o volume consumido localmente, são muito grandes. Em um país com 95% dos estabelecimentos rurais com propriedades médias entre 0,2 e 1 ha de tamanho médio, a consolidação pode não resultar em ganho de eficiência, mas certamente contribui para mitigar o problema da elevada dependência pela agricultura de subsistência de algumas localidades e regiões. A consolidação, no entanto, não significa que o governo chinês vá flexibilizar suas regulamentações de propriedade e uso da terra. Controlar a propriedade e o uso da terra ainda será objetivo do Estado chinês.

O tamanho do mercado chinês, a crescente capacidade de exportação de alguns setores, e as preocupações com segurança alimentar são determinantes dos investimentos que são realizados por estrangeiros na China, e pelos chineses no exterior. Embora existam poucos dados documentando investimentos chineses no setor agrícola, sabe-se que há empresas chinesas investindo em produção agrícola em países africanos, com o objetivo de garantir abastecimento para o mercado chinês. Além do varejo de alimentos, que fez pesados investimentos na China, indústrias de alimentos e tradings houses também estão se posicionando como forma de diversificar fontes de suprimento de matérias-primas agrícolas. A China pode se tornar um mercado ainda mais atrativo para investimentos no agronegócio se o governo promover mudanças nas legislações de propriedade e uso da terra. Embora esse tema ainda esteja fora das prioridades do governo, é uma opção que não deve ser descartada para o futuro, sobretudo à medida que o consumo de alimentos cresce no país. Ainda desconhecemos casos de empresas brasileiras do agronegócio que tenham investimentos na China. Já nossos concorrentes da Austrália e Nova Zelândia estão se movimentando com rapidez nesse sentido.

ÍNDIA
Introdução

Na edição de dezembro de 2007 analisamos o papel da China no comércio agrícola mundial. Esta edição traz uma análise de outro gigante na produção agropecuária, a Índia. Gigantismo talvez seja uma das únicas características que aproximem Índia e China na agricultura. A arcaica estrutura de políticas da Índia e o baixo grau de desenvolvimento do setor agroindustrial são os grandes desafios dos indianos que, no caso da China, já foram superados.

A agricultura indiana lembra um carro com motor de alta potência numa corrida automobilística, porém engatado na primeira marcha e atrapalhando os outros carros. Enquanto os setores de serviços e a indústria têm atraído atenção mundial, a agricultura indiana, baseada em subsistência, dependente de intervenção governamental e com um setor agronegócio pouco desenvolvido, causa muito atrito com os países em desenvolvimento que buscam a liberalização comercial agrícola. Sua postura defensiva nas negociações comerciais da Rodada Doha da Organização Mundial do Comércio reflete o resultado da adoção de políticas intervencionistas que distorcem o setor produtivo e que visam a “proteger” seus agricultores. O que se torna claro após uma análise das estratégias de política da Índia é que, embora as políticas sejam voltadas a garantir a sobrevivência dos produtores e o abastecimento de alimentos a baixos preços para os consumidores, ambos perdem no longo prazo. As políticas indianas de subsídios aos insumos, controle de preços ao produtor e ao consumidor e de restrições ao uso da terra, são o mais forte entrave para o desenvolvimento de uma agricultura integrada aos mercados, respondendo a demandas do consumidor e com capacidade de viabilizar-se e de atrair investimentos. Fica claro que essas políticas estão criando um fosso entre o setor varejista, que está se desenvolvendo rapidamente, seguindo as demandas da nova classe consumidora indiana, e o setor agropecuário, que não consegue acompanhar o processo de forma sistemática e integrada.

Este texto mostra que o grande gargalo do setor agrícola da Índia são as políticas agrícolas. A Índia faz uso de instrumentos de política que foram abandonados no Brasil há mais de 20 anos. Já há políticos, consumidores e grupos empresariais indianos que enxergam os efeitos negativos das políticas existentes em seu país e estão lutando para emendá-las. Porém, a batalha não é fácil devido ao atrativo político da retórica de “proteger os 700 milhões de pessoas vivendo na zona rural contra as importações subsidiadas”.

A Índia tem sido o líder dos países em desenvolvimento protecionistas nas negociações da Rodada Doha, organizados em uma coalizão chamada G-33. Os argumentos indianos refletem a dicotomia das políticas do país: garantir renda aos produtores e, ao mesmo tempo, garantir suprimento de alimentos com baixo custo para os consumidores. Sob o argumento de que os países em desenvolvimento têm o direito de ser soberanos na segurança alimentar, e que a sobrevivência dos meios de subsistência dos pequenos produtores não pode ser ameaçada pelo comércio internacional, o país defende na Rodada a criação de mecanismos para evitar a abertura comercial do seu setor agrícola (produtos especiais e mecanismo de salvaguardas especiais para países em desenvolvimento). Esses mecanismos são objeto de grande preocupação para o agronegócio brasileiro. Além disso, a Índia já mostrou ser capaz de usar políticas que distorcem o mercado internacional por meio de subsídios às exportações. A bola da vez é o açúcar, mas o país já havia subsidiado as exportações de trigo no início dos anos 2000.

Realmente, a Índia tem sido um dos principais defensores das flexibilidades nas fórmulas de abertura comercial agrícola na Rodada Doha, o que certamente poderá prejudicar, ou até anular, os ganhos das negociações comerciais. O objetivo do governo indiano é aumentar as exportações agrícolas do país e manter controle sobre as importações, facilitando apenas a entrada dos produtos cuja produção nacional não atende à demanda.

De outro lado, o baixo nível de desenvolvimento do setor também apresenta oportunidades de comércio e investimentos estrangeiros. Como elaborado no decorrer do texto, a infra-estrutura precária requer muito investimento para adaptar a logística de alimentos aos produtos sensíveis às altas temperaturas. Os sistemas de gerenciamento de transporte, de armazenagem e distribuição de alimentos também podem ser “importados” por empresas estrangeiras, pois as nacionais não têm conhecimento ou experiência na área. As multinacionais do varejo alimentício já estão investindo na cadeia produtiva desde o campo até os supermercados. Cabe saber se esta será a tendência nos próximos anos, ou se o governo ou as cooperativas investirão nessa área também. No entanto, tudo indica que nesse ritmo as empresas estrangeiras terão oportunidades para investir nas áreas de serviços agrícolas, assim como na logística de alimentos perecíveis do campo até as cidades, assim como na área de varejo, praticamente inexistente nas cidades.

Uma outra oportunidade está relacionada ao tema dos biocombustíveis. Diante de um cenário de crescimento do consumo de alimentos e de biocombustíveis, na medida em que o país está adotando misturas de biodiesel e etanol crescentes nos combustíveis fósseis, a demanda por terra e água para agricultura na Índia deverá ser intensificada no futuro. No entanto, o país carece de ambos os recursos naturais. Ainda há incertezas se a Índia vai importar alimentos e utilizar mais terra para produzir biocombustíveis ou se vai optar pelo modelo oposto. No entanto, fica claro que ela será obrigada a importar commodities agrícolas em volumes maiores do que tem importado até hoje.

Desafios do setor agrícola Indiano

Com um meio rural onde ainda vivem cerca de 700 milhões de pessoas, o baixo nível de desenvolvimento do setor agrícola indiano causa surpresa para um expectador externo. Um mergulho no setor agrícola do país nos faz perguntar como uma agricultura de subsistência - com um nível muito baixo de industrialização e mecanização, sem cadeias de suprimento de alimentos organizadas para o setor varejista, que não possui um mercado de terras desenvolvido, que a distribuição dos lotes de terra foi toda administrada pelo Estado, onde sistemas de arrendamentos estão sujeitos a fortes restrições legais - será capaz de produzir os alimentos demandados por uma crescente classe com poder de consumo que, segundo estimativas, passará dos atuais 40% dos domicílios para 60% nos próximos dez anos.

A agricultura indiana vive um momento de mudanças e de reflexão sobre o futuro das suas políticas agrícolas. Os grupos que reconhecem que o agronegócio indiano precisa se desenvolver respondendo às novas demandas do consumidor urbano, sendo capaz de organizar cadeias de suprimento para o setor varejista, pedem por reformas profundas nas políticas agrícolas e nas legislações que inibem investimentos e impedem a integração dos produtores no mercado livre. Essa é a posição dos grupos organizados agrícolas. Da parte dos políticos e do governo indiano, entretanto, as resistências em reformar o modelo atual e desregulamentar os mercados de produtos agrícolas são enormes. A importância dos mercados públicos regulamentados na Índia é tão grande que eles têm um nome de batismo na língua local: mandis. Assim, a Índia vive um momento de reflexão sobre suas estratégias de política, sendo crescente a percepção de que as políticas precisam ser reformadas, mas os formuladores de política, preocupados com o peso político de milhões de agricultores, querem evitar ao máximo que as reformas promovam êxodo rural e levem a uma marginalização ainda maior de agricultores não-eficientes.

O Ministério de Agricultura terá de tomar decisões importantes e complicadas nos próximos anos. Por influenciar diretamente cerca de 58,4% da força de trabalho da Índia (268 milhões de habitantes), as políticas agrícolas requerem muito cuidado na sua formulação. Até hoje, a estratégia foi suportar a produção agrícola com pesados subsídios para compra de insumos (fertilizantes, irrigação e sementes), visando a incentivar o produtor a adotar tecnologia e, assim, aumentar a produtividade, e um sistema de preços mínimos acoplado a compras governamentais com o objetivo de garantia de renda. Essas políticas incentivaram os produtos cobertos pela política (cereais para alimentação, feijões, algodão e açúcar) que passaram a predominar na produção agrícola.

Ao mesmo tempo, as restrições legais quanto ao uso, distribuição e arrendamento de terras afeta adversamente os investimentos, sobretudo aqueles de longo prazo. Esse é um dos maiores entraves para que o crescente varejo consiga organizar cadeias de suprimento. Reformas nas legislações que restringem o uso da terra e a desregulamentação dos mercados públicos é condição necessária para desenvolver o setor agrícola indiano. As políticas atuais não oferecem os incentivos necessários para o produtor rural atender às novas demandas do público urbano com maior poder de consumo, que busca alimentos com maior valor agregado.

Existe uma idéia de investir na produção agrícola de alto valor agregado para amenizar o êxodo rural e melhorar a renda dos agricultores familiares. Essa proposta, no entanto, exige muitos investimentos e um tempo de adaptação, e pode não ser capaz de atender às necessidades da população urbana indiana, mesmo que conte com o apoio dos políticos protecionistas. O desenvolvimento de políticas de estímulo à produção de produtos de valor agregado, por sua vez, não deverá ser acompanhado por reformas substanciais na política de sustentação de preços e renda. As posições protecionistas da Índia na Rodada Doha comprovam que o país não tem interesse em assumir compromissos na OMC que o levem a reformar suas políticas tradicionais. Essa reforma pode até ocorrer, mas será feita por pressões e incentivos internos.As distorções causadas pelos instrumentos de política (subsídios a insumos e preços garantidos) incentivaram o crescimento da produção de alguns produtos em detrimento de outros. O caso típico são as oleaginosas. Os indianos são grandes consumidores de óleos vegetais, mas não foram capazes de desenvolver a produção de soja e palma para atender à demanda local. A necessidade de importar certos itens para atender à demanda interna indica que a Índia provavelmente terá de continuar importando certos produtos durante o período de reforma do setor. Ademais, o risco crescente de falta de recursos naturais ameaça a produção agrícola indiana, tornando assim a oferta do exterior mais importante.

Um comentário:

Anônimo disse...

Very good article.