O texto abaixo é de autoria de Guilherme Gorgulho e encontra-se disponibilizado no site Inovação Unicamp. O problema em questão mostra quão complicado é tudo relacionado ao melhoramento genético de plantas quando os interesses comerciais entram em cena. Apesar de ser um texto de uma certa complexidade técnica, é uma leitura interessante ao público em geral:
"A guerra do brócolis" na EuropaDecisão sobre patentes de tomate sem água e brócolis anticâncer pode mudar regra de proteção para melhoramento convencional
O Escritório de Patentes Europeu (EPO, na sigla em inglês) deverá decidir até o final de 2010 se processos de melhoramento convencional de plantas que envolvam etapas consideradas tecnicamente inovadoras podem ou não ser patenteados. De acordo com a diretiva europeia 98/44/EC, "um processo para a produção de plantas ou animais é essencialmente biológico se consiste inteiramente de fenômenos naturais, tais como cruzamento ou seleção". Agora, uma das câmaras de apelação do EPO se prepara para definir se é ou não "essencialmente biológico" o cruzamento ou seleção em que intervêm marcadores genéticos.
A controvérsia surgiu em razão da patente concedida pelo EPO à companhia britânica Plant Bioscience em 2002, que protege o método desenvolvido pela empresa para obter uma variedade de brócolis com maior concentração da substância anticancerígena presente naturalmente na planta. Em 2003, a multinacional suíça Syngenta, juntamente com a cooperativa francesa de sementes Limagrain, recorreu ao EPO para contestar a patente sob a alegação de que o melhoramento era um "processo biológico convencional" — portanto, não patenteável. A Plant Bioscience argumenta que seu novo sistema de produção de brócolis por meio da seleção assistida por marcadores é uma inovação tecnológica.
A seleção por marcador molecular é uma técnica de análise de DNA que permite localizar variações no genoma associadas a determinadas características — por exemplo, a resistência à seca ou a suscetibilidade a doenças. Com marcadores moleculares, é possível mapear no genoma de diferentes "indivíduos" da mesma espécie vegetal — ou seja, em exemplares diferentes de uma certa planta — os genes responsáveis por uma característica desejada. O método de seleção da Plant Bioscience para aumentar a produção de glucosinolato nos brócolis, resumidamente, consiste em várias etapas de cruzamento e seleção entre variedades selvagens — Brassica villosa e Brassica drepanensis — com linhagens de brócolis chamadas de duplo haplóide. Essas linhagens são originadas por reprodução assexuada a partir de um indivíduo que detenha as características desejadas — neste caso, o maior teor de glucosinolato —, mas que se tornam inférteis no processo por possuir apenas metade do material genético da espécie — chamadas de haplóide. Para duplicar o material genético e permitir que esses indivíduos com características especiais sejam novamente férteis e possam ser cruzados sexuadamente, são empregadas técnicas em laboratório. A identificação da maior concentração do anticancerígeno nas gerações originadas por esses cruzamentos entre as selvagens e as linhagens duplo haplóide é feita com marcadores moleculares.
A alegação da Syngenta na comissão técnica de apelação é de que o uso de marcadores moleculares na etapa de seleção não é motivo suficiente para excluir o método da categoria de "processo essencialmente biológico". Já a empresa britânica diz que o fato de haver "intervenção humana" em algumas das etapas — entre elas, a análise in vitro de tecidos da planta para a identificação dos marcadores moleculares — exclui o processo do conceito de "essencialmente biológico".
Audiências preliminares e o caso dos tomates de Israel
No final de julho, em Munique, na Alemanha, a comissão técnica de apelação do EPO se reuniu em audiências preliminares para discutir o caso. A decisão não virá antes do final de 2010. Outro caso está sendo avaliado conjuntamente pela comissão: em 2000, o Ministério da Agricultura de Israel depositou um pedido de patente de um método para produzir tomates com baixo teor de água desenvolvido pela Organização de Pesquisa Agrícola — vinculado ao governo israelense —, o que reduz os custos de produção de ketchup. Em 2004, a holandesa Unilever — uma das grandes fabricantes mundiais de ketchup — pediu ao EPO o cancelamento da patente com base na mesma justificativa apresentada no caso dos brócolis.
A patente dos tomates não envolve marcadores moleculares nem qualquer técnica de engenharia genética. O método consiste, basicamente, em promover cruzamentos de uma variedade de tomate que naturalmente produz pouca água com outra selvagem para obter a variedade que já nasce com teor hídrico ainda menor. O processo prevê uma etapa final — a colheita só é feita depois do ponto de maturação "convencional", de maneira a permitir a identificação dos tomates mais desidratados. Na apelação no EPO, a Unilever alegou que "diferentemente do processo reivindicado no caso T 83/05 [referente à patente dos brócolis da Plant Bioscience], que exige o uso de marcadores moleculares, o método no presente caso não exige qualquer intervenção humana a não ser cruzamento e seleção". Os advogados da Unilever escreveram na apelação: "Todas as etapas citadas do processo são claramente parte do cruzamento e seleção realizados por uma pessoa especializada em processo de melhoramento convencional".
Segundo petição apresentada pela defesa do Ministério da Agricultura de Israel, "enquanto variedades de plantas podem pelo menos ser protegidas pelos direitos de melhoristas , nenhum sistema de proteção sui generis [categoria da propriedade intelectual que abrange os cultivares, ou novas variedades de vegetais resultantes do trabalho de melhoristas, e que possui características diferenciadas daquelas relacionadas à propriedade industrial. Nota do E.] existe para processos de melhoramento de plantas. Uma interpretação ampla do processo de exclusão no artigo 53(b) da EPC poderia ampliar a brecha na proteção". O artigo 53, alínea b, da European Patent Convention (EPC) — ou Convenção Europeia de Patentes, um tratado multilateral assinado em 1973 — é o que exclui do direito de patenteamento os "processos essencialmente biológicos para a produção de plantas e animais".
Para os israelenses, qualquer " etapa técnica" que exerça um impacto no resultado final do processo de seleção é suficiente para tirar o processo da categoria "essencialmente biológico" e torná-lo patenteável sob as leis europeias. "Um processo que contenha pelo menos um aspecto técnico que não possa ser executado sem a intervenção humana e que tenha um impacto no produto do processo não se enquadra no termo 'processo essencialmente biológico'", argumenta o governo israelense.
Disputas de interesses
"Pela primeira vez na sua história, o EPO vai emitir uma decisão de abrangência ampla sobre a patenteabilidade de processos de seleção convencional de sementes e plantas", lê-se na introdução do estudo "The future of seeds and food under the growing threat of patents and market concentration" (O futuro das sementes e dos alimentos sob a crescente ameaça das patentes e da concentração de mercado), do grupo de origem alemã "No patents on seeds". O documento reúne dados e argumentos que informam as posições contrárias ao patenteamento de genes e de seres vivos e é um indicador da importância da decisão que a câmara de apelação da EPO deverá tomar. A organização enviou em julho um abaixo-assinado para o EPO com 55 mil assinaturas, coletadas — de acordo com a própria coalizão — por 50 entidades que representam produtores agrícolas e uma centena de ONGs de várias partes do mundo. O documento pede: o fim das patentes sobre sementes e animais em âmbito mundial; uma ação das autoridades políticas e dos escritórios de patentes pela não concessão de patentes relacionadas a processos de melhoramento convencional; e a não concessão de patentes para sequências de DNA empregadas em melhoramento convencional, como no caso da seleção assistida por marcadores.
No debate internacional e europeu sobre propriedade intelectual, modelo de agricultura e produção de alimentos alinham-se grupos, organizações e pessoas contrários também ao uso de produtos intensivos em biotecnologia, como sementes transgênicas. No dia 22 de julho, o colunista Paul Betts publicou no Financial Times um texto sobre a "guerra do brócolis", como o caso está sendo chamado. De acordo com Betts, o principal temor manifestado por esses grupos, é que, caso sejam mantidas, as patentes poderão aumentar a concentração no mercado agrícola e elevar os preços dos produtos.
O texto também registra uma suspeita dos grupos contrários à extensão da proteção a técnicas mistas de melhoramento: a de que o desafio da Unilever e da Syngenta à patente do tomate desidratado e dos brócolis anticâncer tenham como objetivo forçar e fortalecer a decisão pró-patenteamento de variedades obtidas por inovações introduzidas no melhoramento convencional — para estender o direito de patente, e não para derrubar a proteção já conquistada pela Plant Bioscience e por Israel. A estratégia consistiria em recorrer à comissão técnica de apelação para, caso a decisão seja em favor da manutenção das patentes, abrir caminho para proteções similares de seus próprios processos biológicos e sementes.
O documento do "No patents on seeds"
O documento de 2009, que Inovação publica nas íntegras desta edição , é assinado por Cristoph Then e Ruth Tippe. Uma pesquisa no Google leva à página de uma organização alemã denominada "TestBiotech" (Instituto para Avaliação Independente de Biotecnologia), em que ambos são apresentados. Then é cirurgião veterinário e, de 1999 a 2007, foi consultor especialista em agricultura e engenharia genética para o Greenpeace. Tippe tem o título de doutora e aparece como pertencente ao grupo alemão "No patents on life" — contra patenteamento "da vida".
O estudo detecta, com base nos dados do EPO, o crescimento de pedidos de patentes sobre variedades obtidas por melhoramento clássico: em 2008, registra, quase 25% de todos os depósitos de patentes relacionados com plantas eram ligados ao que, para a organização não governamental, é melhoramento convencional; em 2000, esse número não chegava a 5%.
Nas patentes dos tomates e dos brócolis, diz o texto, houve "emprego de ferramentas no processo de reprodução". Em ambos os casos, prosseguem os autores, "os detentores das patentes alegam que esses instrumentos técnicos garantem motivos suficientes para configurar o processo inteiro de melhoramento convencional como um processo inventivo para a produção de plantas". O documento ressalta que os titulares das patentes exigem ainda que "sementes, plantas resultantes e suas partes comestíveis" também sejam incluídas no escopo de proteção das patentes. A conclusão da "No patents on seeds" é que, se a decisão da agência europeia for pela manutenção das patentes, qualquer avanço técnico no melhoramento de plantas poderá ser suficiente para as empresas requererem o direito sobre a propriedade intelectual do processo — e por causa dele, de seus produtos —, como já acontece com as sementes geneticamente modificadas.
Indicadores sobre melhoramentos convencionais
"The future of seeds and food" se detém na análise de levantamento feito no EPO que mostra o crescimento das patentes de melhoramento convencional na Europa. Na página 14, o estudo diz que nos últimos anos há uma tendência de reutilização dos processos de melhoramento convencional, com o emprego de novas ferramentas, em lugar da engenharia genética. Entre essas ferramentas está a seleção assistida por marcadores moleculares, "que está permitindo uma abordagem mais eficiente para vários objetivos do melhoramento de plantas em comparação com os métodos usados em sementes geneticamente engenheiradas".
O documento traz um histórico recente de questões em discussão no EPO nos últimos anos — como a PI sobre melhoramento convencional —, aborda a concentração no mercado de sementes — o texto cita um estudo da ONG ETC Group, baseada no Canadá, que afirma que dez empresas concentram dois terços das vendas de sementes no mundo —, e apresenta exemplos de patentes concedidas para melhoramentos convencionais na Europa. "The future of seeds and food" também discute tópicos relacionados à atual situação legal da PI na União Europeia e sugere ações a serem tomadas em âmbito continental e mundial, como a revisão da legislação de patentes da Europa e do Acordo sobre Aspectos de Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPS, na sigla em inglês).