domingo, dezembro 09, 2007

Assentamentos economicamente viáveis

A edição de 5 de dezembro da Revista Exame traz um artigo interessante sobre como sem-terras têm conseguido desenvolver-se economicamente em pequenas propriedades.

Os resultados aparecem devido à forma que a propriedade é gerenciada, de forma eficiente e com agregação de valor. A reportagem completada publicada no Portal Exame pode ser lida abaixo:

Convertidos ao capitalismo

Eles entraram para os movimentos sociais em busca da terra, mas foi na parceria com a iniciativa privada que ex-sem-terra conquistaram renda.

Por Fabiane Stefano


O agricultor Donizete Francisco de Lima, de 44 anos, está preocupado com o preço da cana-de-açúcar. Assim como a totalidade dos produtores de cana do Brasil, Lima reclama da queda de 30% dos preços pagos pela matéria-prima na safra atual, o que irá afetar o faturamento de sua propriedade rural em Teodoro Sampaio, na região do Pontal do Paranapanema, no sudoeste de São Paulo. "O ano passado foi muito bom, mas neste ano a renda vai cair muito", diz ele. Lima não é um grande plantador de cana -- é um ex-sem-terra que está se beneficiando da expansão acelerada do etanol no país. Fornece para a Alcídia, usina que foi comprada recentemente pela ETH, braço agrícola do grupo Odebrecht. Muito antes de se transformar em produtor de cana, Lima viveu quase um ano em uma área invadida da Cesp, onde plantava hortaliças e arroz com um grupo de 100 famílias. Em 1999, recebeu 21 hectares do governo do estado de São Paulo, terras que faziam parte de uma antiga fazenda ocupada por grileiros. Atualmente, ele dedica 6 hectares ao plantio da cana-de-açúcar, cultura que o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) execra e instituiu como o principal alvo de suas invasões. Em 2006, Lima entregou à usina 433 toneladas de cana e conseguiu produtividade de 72 toneladas por hectare, desempenho excepcional considerando a qualidade mediana da terra na região. "É a principal fonte de renda do sítio", diz. Com o dinheiro da cana, ele comprou um caminhão para transportar o leite que também produz, junto com o dos vizinhos, para o laticínio Quatá, em Teodoro Sampaio. A renda mensal de 3 500 reais que obtém é mais que suficiente para ele, a mulher e os dois filhos. No ano que vem, Lima planeja financiar a faculdade do filho mais velho, Paulo Sérgio, que pretende cursar direito.

Como Donizete de Lima, outros agricultores que já engrossaram as fileiras de movimentos sociais, invadiram terras e viveram em acampamentos melhoraram seus rendimentos e qualidade de vida após uma espécie de conversão ao capitalismo. Pragmáticos, deixaram de lado antigos tabus ideológicos e, uma vez assentados, investiram em negócios e parcerias com empresas. É verdade que eles ainda representam uma minoria no universo de quase 1 milhão de famílias assentadas durante os governos Fernando Henrique Cardoso e Lula. Mas seu êxito mostra que existe uma saída economicamente viável para a legião de pequenos produtores do campo. "Os assentados precisam ser inseridos em uma cadeia produtiva, têm de criar uma conexão com o mercado", diz Xico Graziano, especialista em questões agrárias e atual secretário de Meio Ambiente do estado de São Paulo. É uma idéia, claro, que se choca frontalmente com o ideário de MST e companhia. "A reforma agrária no Brasil não é viável se não for parte de um projeto antineoliberal e antiimperialista" é um mantra de João Pedro Stédile, líder do MST.

NO PONTAL DO PARANAPANEMA, região que nos anos 90 foi o conturbado epicentro das invasões do MST no estado, vivem 6 800 famílias assentadas. A maioria se dedica à pecuária leiteira, considerada uma atividade que exige menos aptidão agrícola, mas a produção de cana-de-açúcar, bicho-da-seda e urucum também virou alternativa de renda para uma parcela dos produtores. Há semelhanças entre aqueles que têm se destacado. É gente que trabalha duro, procura por auxílio técnico e reinveste parte dos ganhos na própria terra. Mário Donato é um deles. Em 1996, depois de seis anos vivendo em acampamentos do MST, ele conseguiu uma área de 16 hectares em Mirante do Paranapanema. Nos primeiros anos, tentou sem sucesso as lavouras de milho e mandioca. Em 2001, passou a produzir leite e hoje tem 28 vacas da raça girolanda. Na época de chuvas, quando o pasto está farto, o rebanho chega a produzir 260 litros de leite por dia. A produção é entregue ao laticínio Quatá e gera renda mensal de cerca de 2 500 reais -- dinheiro que permite pagar a faculdade do filho Vinícius, aluno de educação física em Maringá, no Paraná. São poucos os pequenos pecuaristas que conseguem essa renda. Donato tem obtido bons resultados porque investe em técnicas como manejo de solo e pastagem rotativa, o que vem lhe garantindo maior produtividade. Mas ele quer mais. Há dois meses comprou uma ordenha mecânica -- financiada em 36 vezes diretamente com a loja -- e agora pretende investir em animais de melhor qualidade genética. Sua propriedade é considerada modelo pelos técnicos do Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp). "Trabalhei muito e agora está vindo o retorno", diz Donato. "O problema é que em todo lugar tem gente que não está a fim de trabalhar." Para a maioria desses novos produtores rurais, como Donato, os tempos de militância ficaram para trás. Quem mergulhou na rotina do trabalho acaba naturalmente se distanciando dos movimentos sociais. "Muitos continuam na luta, mas eu me afastei do pessoal do MST", diz ele.

SE PARA OS ASSENTADOS a integração com a indústria é uma solução, para as empresas a admissão desses fornecedores exige paciência para iniciá-los nas práticas de negócios. O laticínio Quatá, que compra a produção de ex-sem-terra há oito anos, teve um começo de relacionamento complicado. "Havia gente que recebia a terra e nem sabia o que era uma vaca leiteira", afirma José Cláudio Soares de Brito, gerente do Quatá na unidade de Teodoro Sampaio. Brito lembra que os assentados não entendiam a dinâmica do mercado e faziam greve quando o preço do leite caía. Hoje, a relação entre empresa e fornecedores melhorou, mas a produção da maioria dos ex-sem-terra ainda é considerada amadora. "Como eles não planejam a produção na entressafra, há até animais que morrem durante a época de seca", diz Brito. A empresa está fazendo uma pesquisa entre os ex-sem-terra para investir nos que têm mais aptidão no trato com o gado leiteiro. De acordo com estimativas dos técnicos do Itesp, no Pontal somente uma minoria de assentados alcança o patamar de produtividade e renda de gente como Donato e o produtor de cana Lima. A maioria consegue tirar da terra apenas o equivalente a um salário mínimo e reforça o orçamento fazendo bicos na cidade. Há ainda uma parcela que vive na extrema pobreza e acaba abandonando o lote. Por lei, o assentado tem apenas o direito de uso do solo, que continua a pertencer aos estados ou à União, mas todas as benfeitorias realizadas por ele na propriedade -- como casa, curral e cerca -- têm de ser indenizadas. Nesse caso, o assentado acaba "vendendo" as benfeitorias para vizinhos, que compram os direitos da terra para os filhos. "Geralmente os compradores desse tipo de lote são ex-sem-terra com mais aptidão agrícola e melhor estrutura financeira", diz Marco Túlio Vanalli, coordenador do Itesp na região do Pontal. "Isso está promovendo uma melhora no perfil dos assentados."

Aparecida Oliveira de Lima, de 46 anos, comprou no ano passado as benfeitorias do lote do antigo vizinho para o filho Anderson, de 25 anos. O investimento foi feito com os lucros da safra do urucum, semente que produz um corante conhecido como coloral. Foram 10 000 reais obtidos com a venda da produção à multinacional dinamarquesa Christian Hansen, empresa que processa o corante natural para grandes grupos da área de alimentos. O marido de Aparecida, Aparecido Fernando de Lima, deixou a família no Paraná em 1991 em direção ao Pontal para brigar por um lote na reforma agrária. Naquela época, ambos sonhavam com a produção de urucum, cultura que conheceram em terras paranaenses. Enquanto ele engrossava a multidão que vivia nos acampamentos do MST, ela trabalhava no corte de cana no Paraná para assegurar o sustento da família. "Fiquei cinco anos morando em barraca de encerado. Durante o dia era um calor insuportável e, à noite, um frio horrível", afirma Aparecido. Agora, Cido e Cida -- como são conhecidos na região -- estão empolgados com a nova variedade que a Christian Hansen trouxe para a região, a piave, semente de urucum que possui um teor de tinta três vezes maior e remunera melhor os produtores. A demanda nacional pelo produto está em alta. "Vamos comprar mais dos fornecedores do Pontal para atender à expansão do mercado", diz Plínio Mansim, supervisor de compras da Christian Hansen.

Enquanto parcerias com a indústria como as que se vêem na região do Pontal são construídas lentamente, o ritmo de invasões Brasil afora continua acelerado. Até agosto deste ano, foram realizadas 248 ocupações em todo o país -- 80 apenas no estado de São Paulo. Detalhe: nunca se assentou tantos sem-terra no país. No ano passado, 136 400 famílias ganharam lotes. De acordo com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), até o final de 2006 os assentamentos ocupavam mais de 71 milhões de hectares (área maior que a da soma dos cultivos de soja, cana e café no país). Porém, o que se nota hoje é que, mesmo com um número alto de invasões, há um contínuo esvaziamento dos acampamentos do MST. De acordo com a Pastoral da Terra, entre 2003 e 2006 a entrada de novas famílias nos acampamentos caiu mais de 80% no Brasil, de 59 082 para 10 259. Nesse período, apenas o Incra injetou 8,3 bilhões de reais na criação de novos assentamentos -- isso sem contar os investimentos dos programas estaduais. Mas a diminuição no exército do MST é visível. "Ninguém gosta de viver em barracas de lona", diz Rolf Hackbart, presidente do Incra. "Uma hipótese é que muitas pessoas estejam conseguindo empregos, mesmo que temporários, em obras ou indústrias graças ao crescimento da economia." Também há os que são captados por programas sociais, como o Bolsa Família, e retornam a suas cidades de origem. O resultado é que na região do Pontal os acampamentos minguaram. "Hoje, a movimentação do MST praticamente acabou aqui. A grande questão é o que fazer com os assentados", diz Lamartine Navarro Neto, sócio da usina Alcídia. Exemplos como os de Donizete, Mário e Aparecido dão uma pista do caminho a seguir.

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