O debate entre utilizar os recursos agrícolas na produção de alimentos ou combustíveis está em alta. Até mesmo a revista Veja dedicou 6 páginas de sua última edição para o tema. Segua abaixo integra do texto:
COMIDA X COMBUSTÍVEL
No mundo, a produção de energia tira espaço dos alimentos no campo e recoloca o Brasil no injusto papel de vilão ambiental.
O etanol passou do papel de mocinho para o de bandido em poucas semanas. De alternativa de energia ecologicamente correta capaz de livrar o mundo da dependência do petróleo e aliviar a emissão de poluentes na atmosfera, virou um elemento com potencial para bagunçar o sistema agrícola mundial e inflacionar o preço dos alimentos. Essa percepção negativa foi manifestada recentemente por vários políticos e especialistas. No início do mês passado, por exemplo, um artigo publicado pelos economistas C. Ford Runge e Benjamin Senauer na respeitada revista americana Foreign Affairs alertava que a produção do álcool pode levar a um aumento do preço da comida, agravando o problema da fome nos países mais pobres. Dias depois, durante a 1a Cúpula Energética Sul-Americana, realizada na Venezuela, o presidente do país anfitrião, Hugo Chávez, pressionou para que o documento final do encontro fizesse um alerta sobre os problemas que poderiam ser causados pela expansão do biocombustível, mas a diplomacia brasileira barrou a idéia. Até o ditador cubano Fidel Castro, afastado do governo por problemas de saúde, resolveu meter sua colher na polêmica. Num texto publicado pelo jornal oficial Granma, Fidel caprichou na retórica apocalíptica, classificando a política de investimento no etanol como a "internacionalização do genocídio".
Por ser um dos maiores produtores de etanol do mundo, o Brasil encontra-se hoje sob a mira dos críticos. Na visão de muitos deles, o aumento do uso da cultura da cana para a fabricação de etanol representa uma ameaça à produção de alimentos para o país e para todo o mundo. Com isso, o país foi recolocado no posto de vilão ambiental do planeta . Além de uma imagem injusta, o raciocínio de que o investimento nacional em etanol vai agravar o problema da fome no mundo não encontra lastro na realidade. Embora tenha aumentado a destinação de matéria-prima para a produção de combustível, o Brasil não reduziu seu ritmo de produção de alimentos. Pelo contrário. A atual safra de grãos, de 125 milhões de toneladas, bateu recorde histórico. Além disso, o país tem hoje as melhores condições para multiplicar as áreas de canaviais, sem prejuízo de outras culturas. Um grupo do Núcleo de Assuntos Estratégicos da Presidência da República identificou 12 novas fronteiras adequadas ao plantio da cana-de-açúcar, sem qualquer tipo de impedimento legal ou ambiental. Elas se concentram em São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás e totalizam quase 80 milhões de hectares, área equivalente à soma dos territórios de Alemanha e Espanha. "Além de termos terra sobrando, somos campeões de produtividade em etanol", afirma Eduardo Carvalho, presidente da União da Indústria de Cana-de-Açúcar.
Em boa parte, as preocupações a respeito dos efeitos colaterais da expansão do etanol têm sido baseadas no comportamento dos preços mundiais de alguns grupos de alimentos nos últimos meses. Um episódio emblemático ocorreu em fevereiro, quando dezenas de milhares de pessoas tomaram as ruas de dez cidades do México para realizar o protesto que ficou conhecido como a marcha das tortillas. Prato de resistência da culinária local, a iguaria teve seu preço aumentado em 400% nos últimos meses. A variação foi provocada pelo aumento de seu principal ingrediente, o milho, que no caso mexicano é importado dos Estados Unidos. Como os americanos estão transformando em etanol boa parte dos grãos produzidos em seu território, o alimento está cada vez mais escasso para exportação. Com isso, a tortilla se tornou vítima de uma alta gerada pela clássica lei da oferta e da procura. De um ano para cá, a cotação do milho nas bolsas de Chicago e Nova York sofreu valorização de 50%. O alto preço da commodity pode afetar uma extensa cadeia de empresas que utilizam a matéria-prima na fórmula de seus produtos ou como ração para animais. A lista inclui leite, carne de frango e refrigerantes, entre outros itens.
Outro dos efeitos colaterais da corrida em busca dos combustíveis verdes são as queimadas que estão destruindo largas porções de florestas nativas na Ásia, sobretudo na Malásia e Indonésia. Isso ocorre para que a mata possa ser ocupada por plantações de palmeiras de dendê, cujo óleo é uma das matérias-primas para o biodiesel. No Brasil, o que preocupa os ecologistas é a expansão dos canaviais, que estaria empurrando a pecuária para áreas de preservação ambiental. "Mato Grosso do Sul é um dos exemplos de locais onde esse processo está ocorrendo", afirma Sérgio De Zen, professor de economia e administração da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, em São Paulo.
À luz da alta recente de preços alimentares e de problemas ambientais, cada vez mais gente tem embarcado no pessimismo quando o assunto é etanol. Segundo essa corrente, o mundo estaria conhecendo hoje apenas os primeiros sintomas de uma doença muito mais grave, pois os investimentos na fabricação do etanol vêm se multiplicando. No Brasil, quase metade da cana-de-açúcar que entra no processamento das usinas já é destinada exclusivamente à produção de etanol, avançando sobre a fatia antes usada para o açúcar. Segundo as estimativas do setor, até 2014 a proporção de matéria-prima destinada à fabricação de combustível deve chegar a quase 70% (veja quadro). O dado fica mais impressionante quando se considera que o país deverá dobrar no período a área desse cultivo. Nos Estados Unidos, ocorre um fenômeno semelhante. Atualmente, apenas 14% do milho plantado vira etanol. Em 2014, a proporção vai subir para 36%.
O avanço das culturas destinadas à produção do combustível realmente impressiona, mas isso não significa que o planeta corre o risco de virar um grande milharal e canavial. Em suas previsões apocalípticas sobre o tema, muitos críticos simplesmente estão ignorando o efeito do avanço tecnológico na produção agrícola. Isso fica claro quando se analisa o cenário brasileiro. A curto prazo, o país tem boas chances de evoluir rapidamente na produção de etanol com a aprovação e o uso de novas variedades de sementes transgênicas. Elas têm potencial de aumentar em média 4,5% ao ano a produtividade das culturas de cana-de-açúcar. Outra forma que está sendo utilizada para melhorar a performance no campo é a transformação da pecuária extensiva em semi-intensiva. Com isso, largas áreas ocupadas por gado podem ser utilizadas para cultivo de produtos agrícolas. Além de não prejudicar a produtividade da pecuária, esse sistema aumenta a rentabilidade do produtor. "Ganho dinheiro arrendando parte das minhas terras para uma usina de álcool da região e economizo em ração, pois meu gado passou a ser alimentado com bagaço de cana-de-açúcar", afirma o fazendeiro Francisco Junqueira, um dos maiores pecuaristas de São Paulo. Há dois anos, quando firmou um acordo com a usina, metade dos 7 000 hectares de suas propriedades em Lins, no interior paulista, deixou de servir de pasto. No lugar, hoje se vêem tapetes de canaviais. Junqueira continua criando as mesmas 10 000 cabeças de gado, mas numa área muito menor.
No caso do principal concorrente brasileiro no mercado do combustível verde, o cenário é outro, a ponto de a revista inglesa The Economist, num artigo recente, usar as expressões bom e mau etanol para ilustrar a diferença. Segundo a revista, a produção brasileira está no campo positivo e, a americana, no negativo. Nos Estados Unidos, a briga por espaço no campo entre culturas destinadas à comida e à energia é uma realidade. Como o terreno para a expansão agrícola é bem mais restrito por lá, as plantações de milho só podem crescer se roubarem espaço de outras culturas, como a de cevada, o que pode levar as cervejas a sofrer o efeito tortilla. Em razão das quantidades cada vez maiores de grãos canalizados para a fabricação de etanol, os avicultores também enfrentam problemas. Estima-se que seus custos vêm crescendo à média de 1,5 bilhão de dólares por ano em razão da alta de preço do milho utilizado nas rações. As mudanças no agronegócio americano são tão abruptas que a capital do gado, o Texas, transformou-se na terra do etanol. Duas das maiores usinas de álcool do país estão sendo construídas no estado e devem entrar em operação até dezembro. Ao todo, os Estados Unidos estão investindo 16 bilhões de dólares na construção de 80 novas usinas para a fabricação de combustível nos próximos anos.
Apesar da facilidade que a maior potência econômica tem para injetar dinheiro no negócio, está cada vez mais claro que o modelo em que ele se sustenta hoje é equivocado. Além de provocar transformações negativas no agronegócio americano, a fabricação de etanol com base no milho está longe de ser um exemplo em termos de eficiência. O combustível obtido no Brasil com a cana-de-açúcar leva vantagem no preço final (25% mais barato) e na produtividade de litros por hectare (o dobro da média americana). Se não bastasse, a cana-de-açúcar gasta quatro vezes menos energia do que o milho para que se fabrique o etanol (ou seja, não adianta nada ter um combustível verde que precisa de uma quantidade enorme de diesel para ser fabricado). Os Estados Unidos vêm comendo poeira nessa área mesmo com o governo George W. Bush injetando subsídios no setor (foram 9 bilhões de dólares só no ano passado). Para proteger o mercado interno, Bush ainda dificulta a importação do produto impondo barreiras -- cada galão de etanol brasileiro paga 0,54 dólar de "pedágio" para entrar nos Estados Unidos.
Mas a evolução tecnológica também pode mudar as coisas por lá -- pelo menos é o que apostam algumas das figuras mais destacadas da sociedade americana. "A atual geração de etanol envolve uma certa polêmica, mas, se trabalharmos corretamente, em cinco anos teremos uma nova geração de combustíveis verdes", afirmou numa palestra recente o ex-vice-presidente americano Al Gore. Um dos produtos mais promissores dessa nova geração é o chamado etanol celulósico, que pode ser feito de qualquer tipo de planta, incluindo a palha de milho e o bagaço da cana-de-açúcar. Na visita recente de George W. Bush ao Brasil, os dois países firmaram um acordo que prevê parcerias em pesquisa para o desenvolvimento comercial do produto. As previsões de quando isso pode acontecer variam de cinco a dez anos. "Com essa tecnologia, vai ocorrer uma expansão vertical da produção", afirma Marcos Jank, presidente do Instituto de Estudos do Comércio e Negociações Internacionais (Icone). "O combustível obtido da celulose vai permitir dobrar a produtividade do etanol, atualmente de 7 000 litros por hectare."
Em razão dos benefícios que os avanços tecnológicos devem trazer a esse campo, é mais fácil Fidel Castro se naturalizar cidadão americano do que o etanol gerar uma "internacionalização do genocídio". Em termos de futuro, o que é líquido e certo é que o mapa agrícola mundial nunca mais terá a mesma cara depois do advento dos biocombustíveis. No Brasil, além da expansão da cana-de-açúcar, a tendência é ocorrer um investimento maior na cultura do milho, a fim de suprir a demanda dos Estados Unidos de grãos para alimentação. Num futuro próximo, largas porções da Ásia e da Europa devem privilegiar culturas destinadas a irrigar a produção de biodiesel.
A velocidade das transformações no mapa agrícola mundial vai depender do aumento da demanda pelos combustíveis verdes. Nos Estados Unidos, a intenção do presidente Bush é que, dentro de uma década, eles representem 15% do total consumido por carros e caminhões no país. Na Europa, a idéia é que eles substituam 6% do diesel atualmente consumido até 2010. Planos semelhantes vêm sendo adotados em outros países, como o Japão, com o objetivo de reduzir a emissão de poluentes na atmosfera. Alguns analistas entendem que, mesmo se o movimento conduzir a um pequeno aumento de preço dos alimentos -- por ora algo ainda no terreno das hipóteses --, não será necessariamente uma coisa ruim. Faz sentido. Não há mesmo como chamar de catástrofe um processo que pode, ao mesmo tempo, melhorar a renda no campo e a qualidade de vida no planeta.
COMIDA X COMBUSTÍVEL
No mundo, a produção de energia tira espaço dos alimentos no campo e recoloca o Brasil no injusto papel de vilão ambiental.
O etanol passou do papel de mocinho para o de bandido em poucas semanas. De alternativa de energia ecologicamente correta capaz de livrar o mundo da dependência do petróleo e aliviar a emissão de poluentes na atmosfera, virou um elemento com potencial para bagunçar o sistema agrícola mundial e inflacionar o preço dos alimentos. Essa percepção negativa foi manifestada recentemente por vários políticos e especialistas. No início do mês passado, por exemplo, um artigo publicado pelos economistas C. Ford Runge e Benjamin Senauer na respeitada revista americana Foreign Affairs alertava que a produção do álcool pode levar a um aumento do preço da comida, agravando o problema da fome nos países mais pobres. Dias depois, durante a 1a Cúpula Energética Sul-Americana, realizada na Venezuela, o presidente do país anfitrião, Hugo Chávez, pressionou para que o documento final do encontro fizesse um alerta sobre os problemas que poderiam ser causados pela expansão do biocombustível, mas a diplomacia brasileira barrou a idéia. Até o ditador cubano Fidel Castro, afastado do governo por problemas de saúde, resolveu meter sua colher na polêmica. Num texto publicado pelo jornal oficial Granma, Fidel caprichou na retórica apocalíptica, classificando a política de investimento no etanol como a "internacionalização do genocídio".
Por ser um dos maiores produtores de etanol do mundo, o Brasil encontra-se hoje sob a mira dos críticos. Na visão de muitos deles, o aumento do uso da cultura da cana para a fabricação de etanol representa uma ameaça à produção de alimentos para o país e para todo o mundo. Com isso, o país foi recolocado no posto de vilão ambiental do planeta . Além de uma imagem injusta, o raciocínio de que o investimento nacional em etanol vai agravar o problema da fome no mundo não encontra lastro na realidade. Embora tenha aumentado a destinação de matéria-prima para a produção de combustível, o Brasil não reduziu seu ritmo de produção de alimentos. Pelo contrário. A atual safra de grãos, de 125 milhões de toneladas, bateu recorde histórico. Além disso, o país tem hoje as melhores condições para multiplicar as áreas de canaviais, sem prejuízo de outras culturas. Um grupo do Núcleo de Assuntos Estratégicos da Presidência da República identificou 12 novas fronteiras adequadas ao plantio da cana-de-açúcar, sem qualquer tipo de impedimento legal ou ambiental. Elas se concentram em São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás e totalizam quase 80 milhões de hectares, área equivalente à soma dos territórios de Alemanha e Espanha. "Além de termos terra sobrando, somos campeões de produtividade em etanol", afirma Eduardo Carvalho, presidente da União da Indústria de Cana-de-Açúcar.
Em boa parte, as preocupações a respeito dos efeitos colaterais da expansão do etanol têm sido baseadas no comportamento dos preços mundiais de alguns grupos de alimentos nos últimos meses. Um episódio emblemático ocorreu em fevereiro, quando dezenas de milhares de pessoas tomaram as ruas de dez cidades do México para realizar o protesto que ficou conhecido como a marcha das tortillas. Prato de resistência da culinária local, a iguaria teve seu preço aumentado em 400% nos últimos meses. A variação foi provocada pelo aumento de seu principal ingrediente, o milho, que no caso mexicano é importado dos Estados Unidos. Como os americanos estão transformando em etanol boa parte dos grãos produzidos em seu território, o alimento está cada vez mais escasso para exportação. Com isso, a tortilla se tornou vítima de uma alta gerada pela clássica lei da oferta e da procura. De um ano para cá, a cotação do milho nas bolsas de Chicago e Nova York sofreu valorização de 50%. O alto preço da commodity pode afetar uma extensa cadeia de empresas que utilizam a matéria-prima na fórmula de seus produtos ou como ração para animais. A lista inclui leite, carne de frango e refrigerantes, entre outros itens.
Outro dos efeitos colaterais da corrida em busca dos combustíveis verdes são as queimadas que estão destruindo largas porções de florestas nativas na Ásia, sobretudo na Malásia e Indonésia. Isso ocorre para que a mata possa ser ocupada por plantações de palmeiras de dendê, cujo óleo é uma das matérias-primas para o biodiesel. No Brasil, o que preocupa os ecologistas é a expansão dos canaviais, que estaria empurrando a pecuária para áreas de preservação ambiental. "Mato Grosso do Sul é um dos exemplos de locais onde esse processo está ocorrendo", afirma Sérgio De Zen, professor de economia e administração da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, em São Paulo.
À luz da alta recente de preços alimentares e de problemas ambientais, cada vez mais gente tem embarcado no pessimismo quando o assunto é etanol. Segundo essa corrente, o mundo estaria conhecendo hoje apenas os primeiros sintomas de uma doença muito mais grave, pois os investimentos na fabricação do etanol vêm se multiplicando. No Brasil, quase metade da cana-de-açúcar que entra no processamento das usinas já é destinada exclusivamente à produção de etanol, avançando sobre a fatia antes usada para o açúcar. Segundo as estimativas do setor, até 2014 a proporção de matéria-prima destinada à fabricação de combustível deve chegar a quase 70% (veja quadro). O dado fica mais impressionante quando se considera que o país deverá dobrar no período a área desse cultivo. Nos Estados Unidos, ocorre um fenômeno semelhante. Atualmente, apenas 14% do milho plantado vira etanol. Em 2014, a proporção vai subir para 36%.
O avanço das culturas destinadas à produção do combustível realmente impressiona, mas isso não significa que o planeta corre o risco de virar um grande milharal e canavial. Em suas previsões apocalípticas sobre o tema, muitos críticos simplesmente estão ignorando o efeito do avanço tecnológico na produção agrícola. Isso fica claro quando se analisa o cenário brasileiro. A curto prazo, o país tem boas chances de evoluir rapidamente na produção de etanol com a aprovação e o uso de novas variedades de sementes transgênicas. Elas têm potencial de aumentar em média 4,5% ao ano a produtividade das culturas de cana-de-açúcar. Outra forma que está sendo utilizada para melhorar a performance no campo é a transformação da pecuária extensiva em semi-intensiva. Com isso, largas áreas ocupadas por gado podem ser utilizadas para cultivo de produtos agrícolas. Além de não prejudicar a produtividade da pecuária, esse sistema aumenta a rentabilidade do produtor. "Ganho dinheiro arrendando parte das minhas terras para uma usina de álcool da região e economizo em ração, pois meu gado passou a ser alimentado com bagaço de cana-de-açúcar", afirma o fazendeiro Francisco Junqueira, um dos maiores pecuaristas de São Paulo. Há dois anos, quando firmou um acordo com a usina, metade dos 7 000 hectares de suas propriedades em Lins, no interior paulista, deixou de servir de pasto. No lugar, hoje se vêem tapetes de canaviais. Junqueira continua criando as mesmas 10 000 cabeças de gado, mas numa área muito menor.
No caso do principal concorrente brasileiro no mercado do combustível verde, o cenário é outro, a ponto de a revista inglesa The Economist, num artigo recente, usar as expressões bom e mau etanol para ilustrar a diferença. Segundo a revista, a produção brasileira está no campo positivo e, a americana, no negativo. Nos Estados Unidos, a briga por espaço no campo entre culturas destinadas à comida e à energia é uma realidade. Como o terreno para a expansão agrícola é bem mais restrito por lá, as plantações de milho só podem crescer se roubarem espaço de outras culturas, como a de cevada, o que pode levar as cervejas a sofrer o efeito tortilla. Em razão das quantidades cada vez maiores de grãos canalizados para a fabricação de etanol, os avicultores também enfrentam problemas. Estima-se que seus custos vêm crescendo à média de 1,5 bilhão de dólares por ano em razão da alta de preço do milho utilizado nas rações. As mudanças no agronegócio americano são tão abruptas que a capital do gado, o Texas, transformou-se na terra do etanol. Duas das maiores usinas de álcool do país estão sendo construídas no estado e devem entrar em operação até dezembro. Ao todo, os Estados Unidos estão investindo 16 bilhões de dólares na construção de 80 novas usinas para a fabricação de combustível nos próximos anos.
Apesar da facilidade que a maior potência econômica tem para injetar dinheiro no negócio, está cada vez mais claro que o modelo em que ele se sustenta hoje é equivocado. Além de provocar transformações negativas no agronegócio americano, a fabricação de etanol com base no milho está longe de ser um exemplo em termos de eficiência. O combustível obtido no Brasil com a cana-de-açúcar leva vantagem no preço final (25% mais barato) e na produtividade de litros por hectare (o dobro da média americana). Se não bastasse, a cana-de-açúcar gasta quatro vezes menos energia do que o milho para que se fabrique o etanol (ou seja, não adianta nada ter um combustível verde que precisa de uma quantidade enorme de diesel para ser fabricado). Os Estados Unidos vêm comendo poeira nessa área mesmo com o governo George W. Bush injetando subsídios no setor (foram 9 bilhões de dólares só no ano passado). Para proteger o mercado interno, Bush ainda dificulta a importação do produto impondo barreiras -- cada galão de etanol brasileiro paga 0,54 dólar de "pedágio" para entrar nos Estados Unidos.
Mas a evolução tecnológica também pode mudar as coisas por lá -- pelo menos é o que apostam algumas das figuras mais destacadas da sociedade americana. "A atual geração de etanol envolve uma certa polêmica, mas, se trabalharmos corretamente, em cinco anos teremos uma nova geração de combustíveis verdes", afirmou numa palestra recente o ex-vice-presidente americano Al Gore. Um dos produtos mais promissores dessa nova geração é o chamado etanol celulósico, que pode ser feito de qualquer tipo de planta, incluindo a palha de milho e o bagaço da cana-de-açúcar. Na visita recente de George W. Bush ao Brasil, os dois países firmaram um acordo que prevê parcerias em pesquisa para o desenvolvimento comercial do produto. As previsões de quando isso pode acontecer variam de cinco a dez anos. "Com essa tecnologia, vai ocorrer uma expansão vertical da produção", afirma Marcos Jank, presidente do Instituto de Estudos do Comércio e Negociações Internacionais (Icone). "O combustível obtido da celulose vai permitir dobrar a produtividade do etanol, atualmente de 7 000 litros por hectare."
Em razão dos benefícios que os avanços tecnológicos devem trazer a esse campo, é mais fácil Fidel Castro se naturalizar cidadão americano do que o etanol gerar uma "internacionalização do genocídio". Em termos de futuro, o que é líquido e certo é que o mapa agrícola mundial nunca mais terá a mesma cara depois do advento dos biocombustíveis. No Brasil, além da expansão da cana-de-açúcar, a tendência é ocorrer um investimento maior na cultura do milho, a fim de suprir a demanda dos Estados Unidos de grãos para alimentação. Num futuro próximo, largas porções da Ásia e da Europa devem privilegiar culturas destinadas a irrigar a produção de biodiesel.
A velocidade das transformações no mapa agrícola mundial vai depender do aumento da demanda pelos combustíveis verdes. Nos Estados Unidos, a intenção do presidente Bush é que, dentro de uma década, eles representem 15% do total consumido por carros e caminhões no país. Na Europa, a idéia é que eles substituam 6% do diesel atualmente consumido até 2010. Planos semelhantes vêm sendo adotados em outros países, como o Japão, com o objetivo de reduzir a emissão de poluentes na atmosfera. Alguns analistas entendem que, mesmo se o movimento conduzir a um pequeno aumento de preço dos alimentos -- por ora algo ainda no terreno das hipóteses --, não será necessariamente uma coisa ruim. Faz sentido. Não há mesmo como chamar de catástrofe um processo que pode, ao mesmo tempo, melhorar a renda no campo e a qualidade de vida no planeta.
OPORTUNIDADES PARA O BRASIL
À medida que os agricultores americanos se dedicam a expandir as plantações de milho para a produção de etanol, em prejuízo de outras culturas, surgem espaços no mercado dos Estados Unidos que podem ser aproveitados pelos produtores brasileiros
Milho Com as plantações nos Estados Unidos canalizadas para a produção de combustível, começa a faltar milho no país para alimentação. Em razão disso, o preço do produto já aumentou 40%. O Brasil é o país que tem maiores possibilidades de suprir essa demanda
Soja As plantações do grão perdem espaço para o milho nos Estados Unidos. A tendência é uma valorização da soja, e o único país capaz de expandir rapidamente a fronteira é o Brasil.
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