segunda-feira, junho 11, 2007

Comida x combustível - o debate continua!

Ajudando no melhor esclarecimento sobre este interessante tema, coloco dois artigos recentes escritos por duas autoridades do setor sucroalcooleiro, um é representante dos plantadores de cana (agricultores) e o outro dos usineiros que apesar de deixar recentemente a presidência da Unica, escreveu o artigo no começo do mes:

A CANA E A PRODUÇÃO DE ALIMENTOS
Manoel Carlos de Azevedo Ortolan

A discussão iniciada a partir dos posicionamentos dos presidentes da Venezuela, Hugo Chávez, e de Cuba, Fidel Castro, de que os bicombustíveis são uma séria ameaça à produção de alimentos merece alguns esclarecimentos. O primeiro deles é seu viés político. Quinta exportadora mundial de petróleo, a Venezuela não tem muito interesse no sucesso dos combustíveis renováveis. E o fato de a questão favorecer os Estados Unidos, que são os maiores produtores de etanol e críticos à política dos dois presidentes, já é o suficiente para colocar os dois países no grupo dos contras.

Pelo que observamos até agora, transcorridos pelo menos três anos desse período de expansão do setor, a cana está avançando em São Paulo principalmente sobre as áreas de pastagem degradada. Se observarmos a estimativa para a safra paulista de grãos, veremos que haverá redução na área de alguns itens, por conta também das condições desfavoráveis do mercado. A cana substitui culturas menos rentáveis ou aquelas mais vulneráveis a fenômenos climáticos.

No caso dos grãos, por exemplo, se ocorre estiagem ou chuva em excesso, o índice de perdas pode chegar a 70%, 80%, como o que aconteceu nas últimas safras em regiões produtoras importantes. Já no caso da cana, nas mesmas condições as perdas chegam a, no máximo, 10%. Assim, a possibilidade de maior renda e menores riscos em relação à produção são os critérios que o produtor usa na hora de decidir o que plantar.

No entanto, a recuperação dos preços de alguns grãos _ especialmente soja, milho e trigo_ poderá estimular a expansão da área dessas culturas ou mesmo impedir que a cana avance sobre elas. Além disso, os ganhos de produtividade podem compensar eventuais reduções de área. Na safra 1976/77, por exemplo, a área plantada com grãos no Brasil era de 37,3 milhões de hectares e a produção beirava os 50 milhões de toneladas. Na safra passada, colhemos 120 milhões de toneladas, mais que o dobro, em uma área apenas 22% maior. Já a produtividade saltou de 1.258 kg/ha para 2.852 kg/ha, um crescimento de quase 160%.

Além disso, a produtividade da cana também deverá ter um salto importante graças aos resultados das pesquisas. Vejamos. Na década de 60 produzíamos 65 litros de álcool por tonelada de cana. Hoje, com o desenvolvimento de variedades e o aumento na eficiência no processo industrial, chegamos a 100. Daqui a alguns anos certamente esse resultado será mais interessante, sobretudo se considerarmos que a produção de etanol a partir do bagaço e da palha da cana será competitiva dentro de alguns anos. Estaremos produzindo mais etanol em uma área provavelmente bem menor do que estimamos hoje.

O ciclo da cana também permite a consorciação e a rotação de culturas. A região de Ribeirão Preto, por exemplo, é a maior produtora de amendoim do país por conta da utilização do grão como rotação. Há também a utilização do milho, da soja e outros grãos. Culturas com ciclo de 90 dias também poderão ser utilizadas de forma consorciada à cana, prática que está em desuso, mas que poderá ser viabilizada.

Assim, esse temor de que os bicombustíveis irão comprometer a produção de alimentos e provocar o aumento da fome, como pregam Fidel e Chávez, não encontra respaldo. É normal que, numa discussão, surjam posições extremas. Mas é preciso esclarecer a questão para não cairmos naquela velha história de que uma mentira repetida reiteradas vezes pode se transformar em uma verdade absoluta.

(Manoel Carlos de Azevedo Ortolan é presidente da Canaoeste - Associação dos Plantadores de Cana do Oeste do Estado de São Paulo http://www.canaoeste.com.br/)


FIDEL MALTHUS CHAVEZ
Eduardo Pereira de Carvalho

O medo da fome surgiu com Noé, ganhou paradigma com os “sete anos de vacas magras” do alto império egípcio, justificou insurreições da plebe romana e, desde então, freqüenta a civilização ocidental com a regularidade das marés. Hoje, as duas sociedades contemporâneas que lideram as exportações de alimentos – Estados Unidos e o Brasil – são chamadas à razão porque se mostram dispostas a mobilizar o Continente para garantir uma oferta confiável de biocombustíveis a preços competitivos para o planeta Terra. Profetas do pessimismo ensinam-nos, com impaciente desdém, que a população cresce tão rápido que todas as terras agricultáveis precisam ficar reservadas à produção de comida. Com dois séculos de atraso, replicam o catastrofismo do clérigo inglês Thomas Malthus (1766-1834) – que no seu lúgubre ensaio sobre “o melhoramento futuro da sociedade”, de 1798, advertia para a colisão entre o fenômeno populacional e a capacidade limitada para garantir alimentos a todos os viventes.

O que se passou realmente depois que o fundador da demografia vaticinou o pior, figura entre as grandes lições acerca do engenho humano. Os Estados Unidos, por volta de 1915, quando a população arranhava os 100 milhões, usavam 300 milhões de acres para dar de comer à sua gente. No intervalo de quatro gerações, aquela agricultura continuou a ocupar a mesma área, só que deve atender a três vezes mais gente – fora a exportação de 60 milhões de toneladas anuais de grãos. O século 20 testemunhou uma revolução na produtividade do campo – pela mecanização do plantio e da colheita, melhoramento de sementes, uso intensivo de fertilizantes e defensivos e manejo científico dos recursos naturais. O milho híbrido e variedades hiperprodutivas de trigo estão na base da multiplicação espetacular da produção, começando na América do Norte e rapidamente espalhando ganhos em todos os azimutes. A colheita planetária, de 630 milhões de toneladas em 1950, quando começa a série estatística das Nações Unidas, baterá em 2,1 bilhões de toneladas neste ano.

Também no Brasil se anotam progressos da mesma grandeza. Éramos capazes de produzir 20 milhões de toneladas de grãos em 1960 – quando por sinal a colheita da cana-de-açúcar estava na mesma ordem de grandeza. Agora, caminhamos para uma colheita de 130 milhões de toneladas de grãos, enquanto a cana supera os 400 milhões de toneladas. Transformações espetaculares se acotovelaram num ciclo frenético: a pesquisa e o fomento que abriram caminho para a soja, do Brasil Central, a correção intensiva dos solos pelo calcário, a introdução do pasto mais fértil com gramíneas aclimatadas, tipo braquiaria, e o maior caso de sucesso na história da moderna agricultura tropical, que foi a incorporação do “cerrado” como fator de produção. O resultado desse trabalho multidisciplinar é conhecido de todos: o Brasil, que eventualmente importava várias espécies de alimentos duas gerações atrás, exibe saldo comercial superior aos US$ 50 bilhões no período de doze meses encerrado em março último.

O velho Malthus tinha alma de contador, era metódico na coleta das estatísticas e, discípulo de Cambridge, onde estudou e ensinou praticamente a vida toda, era versado na matemática genial do colega e predecessor Sir Isaac Newton, que tinha domado a mecânica celeste um século antes com base nos princípios da ação e da reação. Determinado a identificar o componente de uma relação de natureza biunívoca, que por exigência “científica” teria de acompanhar inexoravelmente o fenômeno da explosão populacional, selecionou a desgraça da Fome e com isso passou à História como paradigma do pessimismo. Era acadêmico: um bicho da cidade, para quem os mistérios da fotossíntese eram casos maçantes da existência caipira.

Mais que relembrar feitos do passado recente, é imperioso notar que a transformação radical da agricultura está engatinhando: o próximo capítulo virá com as modificações genéticas na estrutura das plantas, com resultados ainda mais surpreendentes. E no caso da produção de biocombustíveis, a próxima arrancada só tomará vigor quando acionada pelos maiores países produtores. E tanto Brasil como Estados Unidos não têm qualquer motivo e nem disposição para dispensar as posições duramente conquistadas na hierarquia dos fornecedores de alimentos para o mundo. Porta-vozes acadêmicos de uma visão pessimista fazem parte da paisagem das idéias. Recente artigo na “Foreign Affairs” representa uma variedade do magistério cívico fundado por Malthus -- e cuja existência é tão importante quanto necessária para que o conhecimento evolua sem ingenuidade ou complacência.

Nessa família de profetas de catástrofes, contudo, irrompem subitamente alguns protagonistas cuja biografia se misturava com a esperança. Conhecido entusiasta da possibilidade que o etanol da cana-de-açúcar oferece às nações tropicais que dispõem de terras e de água abundante, Fidel Castro virou casaca no prazo de quatro semanas, arrastando consigo Hugo Chavez, num súbito dueto de lideranças continentais dispostas a se contrapor ao projeto de disseminação da bioenergia co-patrocinado pelos Estados Unidos e pelo Brasil. Ainda no começo deste ano, a Venezuela manobrava ativamente para criar uma base produtiva de etanol a partir da cana-de-açúcar: Chavez articulou pessoalmente acordos para construção de uma dezena de unidades produtivas com tecnologia brasileira e outras tantas com suporte de profissionais cubanos. Numa declaração minuciosamente ditada ao jornal “Granma”, alinhada com discurso do aliado de Caracas, o veterano Castro assumiu a defesa da produção incondicional de alimentos – e se tornaram, portanto, insuspeitados discípulos de Thomas Malthus, apóstolo do “laissez-faire”. Que a fase neoliberal lhes seja leve!

(Eduardo Pereira de Carvalho é presidente da UNICA - União da Agroindústria Canavieira de São Paulo http://www.unica.com.br/)
Publicado na Folha de S. Paulo em 06 de maio de 2007

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