A reportagem da última edição da Exame mostra bem os efeitos da crise nas pequenas cidades agrícolas pelo interior do Brasil:
Crise nova, velhas práticas
Crise nova, velhas práticas
A pequena Canarana, no interior do Mato Grosso, é um retrato dos efeitos da falta de crédito no campo - e um alerta para a necessidade de mudar o modelo financeiro do setor
Por Fabiane Stefano 02.04.2009 17h50
Revista EXAME - O mês de março costumava ser chamado de Natal pelos comerciantes de Canarana, cidade de 18 000 habitantes localizada no nordeste de Mato Grosso, uma área produtora de soja e carne. Assim como em outros municípios que têm no agronegócio sua principal fonte de renda, é em março que os lucros colhidos na safra de grãos movimentam as vendas de carros, eletrodomésticos, móveis e outros produtos. A renda do campo irriga toda a economia da cidade, beneficiando além do comércio também os serviços. Mas, neste ano, o Natal fora de época não veio. A cidade encara uma situação duplamente complicada. Tanto a agricultura como a pecuária, responsáveis por 80% da produção de riqueza local, enfrentam problemas. O Arantes Alimentos, único frigorífico de Canarana, fechou as portas no final do ano passado, demitiu quase 400 pessoas e deixou de pagar os pecuaristas. Até dezembro, estima-se que outras 2 700 percam o emprego como consequência indireta do fim das atividades do Arantes, empresa com dívida de 1,5 bilhão de reais e que em janeiro entrou com pedido de recuperação judicial. "Quando uma empresa desse porte fecha, ocorre um efeito cascata que afeta muitas pessoas além dos próprios demitidos. Isso é ainda mais grave em Canarana, uma cidade pequena", diz o prefeito Walter Faria.
Na área de grãos, o outro alicerce da economia local, a situação também é complicada. Muitos agricultores estão endividados e não conseguem obter financiamento para comprar máquinas e insumos. Mesmo produtores mais capitalizados estão temerosos e seguram o dinheiro para autofinanciar o próximo plantio. A cautela que se instaurou nas fazendas se reflete nos negócios da cidade. "Devemos vender 10% menos do que esperávamos", diz Gilmar Pereira de Souza, gerente da Macledi Magazine, rede de calçados que acabou de se instalar em Canarana atraída pelo crescimento da cidade, que vinha recebendo uma média de 1 500 migrantes por ano. Neste ano, esse movimento parou.
O que acontece em Canarana se repete em maior ou menor grau em outras cidades do Centro-Oeste brasileiro. Acostumadas a períodos de crescimento proporcionados pela riqueza da soja e da pecuária, elas sofrem quando a maré muda - algo normal nos ciclos de alta e de baixa da atividade rural. A situação não parece tão grave quando se olha para o valor pago por produtos como a soja. Embora o período de cotações recordes tenha ficado para trás, os preços reagiram e estão em um patamar até positivo. O que realmente está assustando é a crise internacional e seu efeito no crédito. Desde setembro, as fontes de recursos privados secaram - especialmente os financiamentos providos por tradings e fornecedores de insumos -, deixando fazendeiros e agroindústrias na mão. Com isso, ressurgiram com força problemas antigos, como o alto endividamento. Há décadas a dívida agrícola vem sendo rolada - e não para de crescer. O agronegócio acaba de concluir mais uma renegociação de 75 bilhões de reais em débitos, cujo pagamento foi parcelado. Nem assim o problema foi sanado.
O alto endividamento é resultado do viciado sistema de crédito rural em vigor no Brasil há décadas. "A agricultura é uma atividade de risco, mas os produtores sempre apostam numa renegociação de juros e dilatação de prazos", diz o economista Gervásio Castro de Rezende, professor da Universidade Federal Fluminense. Desde 2000, as operações de crédito rural quadruplicaram, atingindo o montante de 106 bilhões de reais, o que equivale a quase dois terços do produto interno bruto agropecuário. Estimativas da Associação dos Produtores de Soja do Mato Grosso apontam que 70% dos 100 000 produtores do estado expandiram seus negócios à base de financiamentos. É claro que crédito é fundamental para a expansão de qualquer setor da economia. O problema é que, nesse caso, ele se tornou uma espécie de dinheiro fácil, estimulado pela certeza de repactuações cíclicas dos débitos. "Há 20 anos estamos renegociando dívidas. Se nada for feito, daqui a 20 anos estaremos na mesma situação", diz Luiz Carlos Guedes Pinto, vice-presidente do Banco do Brasil e ex-ministro da Agricultura.
Por Fabiane Stefano 02.04.2009 17h50
Revista EXAME - O mês de março costumava ser chamado de Natal pelos comerciantes de Canarana, cidade de 18 000 habitantes localizada no nordeste de Mato Grosso, uma área produtora de soja e carne. Assim como em outros municípios que têm no agronegócio sua principal fonte de renda, é em março que os lucros colhidos na safra de grãos movimentam as vendas de carros, eletrodomésticos, móveis e outros produtos. A renda do campo irriga toda a economia da cidade, beneficiando além do comércio também os serviços. Mas, neste ano, o Natal fora de época não veio. A cidade encara uma situação duplamente complicada. Tanto a agricultura como a pecuária, responsáveis por 80% da produção de riqueza local, enfrentam problemas. O Arantes Alimentos, único frigorífico de Canarana, fechou as portas no final do ano passado, demitiu quase 400 pessoas e deixou de pagar os pecuaristas. Até dezembro, estima-se que outras 2 700 percam o emprego como consequência indireta do fim das atividades do Arantes, empresa com dívida de 1,5 bilhão de reais e que em janeiro entrou com pedido de recuperação judicial. "Quando uma empresa desse porte fecha, ocorre um efeito cascata que afeta muitas pessoas além dos próprios demitidos. Isso é ainda mais grave em Canarana, uma cidade pequena", diz o prefeito Walter Faria.
Na área de grãos, o outro alicerce da economia local, a situação também é complicada. Muitos agricultores estão endividados e não conseguem obter financiamento para comprar máquinas e insumos. Mesmo produtores mais capitalizados estão temerosos e seguram o dinheiro para autofinanciar o próximo plantio. A cautela que se instaurou nas fazendas se reflete nos negócios da cidade. "Devemos vender 10% menos do que esperávamos", diz Gilmar Pereira de Souza, gerente da Macledi Magazine, rede de calçados que acabou de se instalar em Canarana atraída pelo crescimento da cidade, que vinha recebendo uma média de 1 500 migrantes por ano. Neste ano, esse movimento parou.
O que acontece em Canarana se repete em maior ou menor grau em outras cidades do Centro-Oeste brasileiro. Acostumadas a períodos de crescimento proporcionados pela riqueza da soja e da pecuária, elas sofrem quando a maré muda - algo normal nos ciclos de alta e de baixa da atividade rural. A situação não parece tão grave quando se olha para o valor pago por produtos como a soja. Embora o período de cotações recordes tenha ficado para trás, os preços reagiram e estão em um patamar até positivo. O que realmente está assustando é a crise internacional e seu efeito no crédito. Desde setembro, as fontes de recursos privados secaram - especialmente os financiamentos providos por tradings e fornecedores de insumos -, deixando fazendeiros e agroindústrias na mão. Com isso, ressurgiram com força problemas antigos, como o alto endividamento. Há décadas a dívida agrícola vem sendo rolada - e não para de crescer. O agronegócio acaba de concluir mais uma renegociação de 75 bilhões de reais em débitos, cujo pagamento foi parcelado. Nem assim o problema foi sanado.
O alto endividamento é resultado do viciado sistema de crédito rural em vigor no Brasil há décadas. "A agricultura é uma atividade de risco, mas os produtores sempre apostam numa renegociação de juros e dilatação de prazos", diz o economista Gervásio Castro de Rezende, professor da Universidade Federal Fluminense. Desde 2000, as operações de crédito rural quadruplicaram, atingindo o montante de 106 bilhões de reais, o que equivale a quase dois terços do produto interno bruto agropecuário. Estimativas da Associação dos Produtores de Soja do Mato Grosso apontam que 70% dos 100 000 produtores do estado expandiram seus negócios à base de financiamentos. É claro que crédito é fundamental para a expansão de qualquer setor da economia. O problema é que, nesse caso, ele se tornou uma espécie de dinheiro fácil, estimulado pela certeza de repactuações cíclicas dos débitos. "Há 20 anos estamos renegociando dívidas. Se nada for feito, daqui a 20 anos estaremos na mesma situação", diz Luiz Carlos Guedes Pinto, vice-presidente do Banco do Brasil e ex-ministro da Agricultura.
O fato é que, do final de 2008 para cá, a falta de crédito não permitiu novas aquisições de máquinas ou de insumos. "De dez pedidos de financiamentos, apenas um foi aprovado pelo banco. Por isso, vendemos uma única colheitadeira nos últimos seis meses", diz Eduardo Olea, gerente da concessionária Massey Ferguson de Canarana. No Centro-Oeste, as vendas de tratores para a agricultura empresarial - a predominante em Mato Grosso - caíram à metade nos dois primeiros meses deste ano. Boa parte das encomendas de colheitadeiras, máquinas que chegam a custar 550 000 reais, foi cancelada. O estrago não está restrito ao Centro-Oeste, região do agronegócio mais endividada do país. Em Santa Rosa, no Rio Grande do Sul, 155 pessoas foram demitidas na fábrica de colheitadeiras da Massey Ferguson. "Os pátios de todas as empresas estão cheios. Esperamos que o governo ajude a criar uma solução para o setor", diz Valentino Rizzioli, presidente da CNH, outra fabricante de máquinas agrícolas. Produtores e associações ruralistas temem que a falta de crédito contamine a próxima safra, cuja fase de compra de insumos deveria ter começado - mas não começou - em março. Para tentar melhorar a situação, no final do mês o Banco do Brasil antecipou a liberação de recursos para a aquisição de fertilizantes e sementes. A instituição também deve aumentar em 20% o volume de crédito para a próxima safra, passando de 35 bilhões de reais para 42 bilhões. "O que muita gente ainda não percebeu é que o modelo precisa mudar", diz o consultor André Pessoa, da Agroconsult. "Não é sustentável tocar o negócio de grãos com 90% de recursos de bancos e tradings e 10% de dinheiro próprio."
O mesmo raciocínio se aplica ao setor frigorífico, que foi largamente impulsionado por capital do mercado financeiro. Calcula-se que 10 bilhões de reais foram investidos nos últimos anos em aquisições, construção de novas unidades e modernização de instalações industriais. Boa parte do dinheiro veio de aberturas de capital, emissões de títulos de dívida e aportes do BNDES. Os investimentos colocaram o Brasil na liderança mundial das exportações, mas também tornaram os frigoríficos dependentes de um fluxo de receitas para pagar as dívidas. Com a crise, que reduziu as vendas externas e o preço da carne, esse mecanismo travou. Seguiu-se uma sucessão de quebradeiras de grandes exportadores, como o Independência e o Quatro Marcos. No momento, o BNDES estuda a criação de uma linha de crédito para o setor.
É certo que, por ora, muitas cidades do Centro-Oeste vão encarar dias difíceis até o setor atingir um novo ponto de equilíbrio. Um estudo do Instituto Mato-grossense de Economia Agropecuária identificou o impacto da crise da carne no estado que detém o maior rebanho bovino do país. Até o início de março, 4 800 demissões ocorreram em dez frigoríficos, resultando em outras 39 000 demissões indiretas. Das 50 unidades de abate do estado, 15 pediram recuperação judicial. A compra de gado caiu e diminuiu em 20% o preço pago pelo boi gordo.
"Agora não sabemos para quem iremos vender. Se um bom frigorífico como o Independência quebrou, qual será o próximo a fechar?", diz o criador Marcos da Rosa, de Canarana, que tem a receber meio milhão de reais de dois frigoríficos encrencados. Quem se arrisca a vender aceita deságios de pelo menos 7% para receber à vista. "Isso piora a situação dos frigoríficos, que financiavam a compra de matéria-prima dos próprios criadores. Existe um temor generalizado no setor", diz José Carlos Hausknecht, consultor da MBAgro. Ao que parece, o Natal fora de época só vai voltar quando o crédito fluir novamente.
Um comentário:
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